Em meados dos anos 80, mais exatamente a partir do início dos conflitos entre policiais e traficantes nas favelas do Rio, então sob o governo Brizola, o jornal Folha de São Paulo começou a tratar os bandidos que se tornavam notícia como “supostos traficantes”. A orientação partiu da direção do jornal e logo virou norma entre os redatores, editores e repórteres do diário. Virou lugar-comum ler na Folha que a polícia havia prendido fulano e beltrano, “supostos traficantes” do morro x ou da favela y. Começava ali a relação acolchoada entre o jornalismo brasileiro e a bandidagem. Sob a justificativa de não cometer injustiças, pré-julgando pessoas, a Folha passou a tratar a todos como presumíveis criminosos. Mesmo aqueles que, notadamente, diante das circunstâncias do fato, haviam tentado escapar da força policial mediante a troca de tiros. De lá para cá, a mídia como um todo foi muito além da cuidadosa e generosa Folha. A criminalidade do país ora é absolvida antes de ser julgada, ora ganha a misericórdia da dúvida de suas ações maléficas. Raramente bandidos e traficantes são tratados como bandidos e traficantes. Antes, eles são “vítimas da sociedade e do governo que, num último recurso de sobrevivência, buscam o tráfico como alternativa para sua existência”. Esta acomodação do crime numa “alternativa extrema” de sobrevivência acabou por contaminar toda a complexa relação entre traficantes/criminosos e a chamada “opinião pública”. A coisa desemboca nas propagandas partidárias, nos discursos políticos, nos seminários acadêmicos, nas aulas de jornalismo e História, na conversa entre professores e alunos, nos telejornais e nos programas de auditório e similares. Raros são os debatedores que hoje pedem a morte de um bandido em que pesem os levantamentos feitos que mostram a preferência da população pela pena de morte, quando perguntada se a aprovaria ou não. Pede-se, ao invés disso, nestes círculos, com reflexo nas ruas, a paz. A paz tornou-se a bandeira dos brasileiros atingidos pela violência através das forças da mídia e das organizações desarmamentistas que são, em última análise, solidárias com o indivíduo que mata “num último recurso de sobrevivência”. Ao trocar o discurso de guerra pelo discurso da paz, o que se fez foi absolver o agressor, transformando ele também em vítima na ação criminosa. Guerra mesmo, esta ficou restrita às facções de um bairro em luta pelo domínio territorial onde irão explorar o comércio ilegal de drogas. Esta mudança na mentalidade e no raciocínio do brasileiro começou há quase 30 anos. Quando o PPS, este ano, numa peça de propaganda na TV, diz que seus dirigentes lutam pela paz, ele está dizendo ao mesmo tempo que compreende a ação dos traficantes. Do contrário, diria: o PPS luta pela destruição do tráfico de drogas e de seus agentes. E assim ocorre diariamente, na maior parte das discussões parlamentares, acadêmicas, nos grêmios, nas associações, nos conselhos, nas rádios e afins. Uma das imagens mais tristes da atualidade, é a de uma criança em passeata com um cartazete de papelão onde se lê “paz”. Na sua pureza, ela sustenta sem saber o próprio mal que despedaça sua família, os amigos, o seu bairro, a sua rua. Justamente quem a ameaça acaba por ela também absolvida. Esta é a tragédia brasileira criada entre a academia e as redações de jornais e TVs. Nota do Editor: Sandro Guidalli nasceu em Lages, principal município da serra catarinense a 200 quilômetros de Florianópolis. É jornalista desde 1989, tendo prestado serviços para inúmeros jornais e publicações do país, entre eles a Folha de S. Paulo e O Globo. Foi editor do Mídia Sem Máscara entre fevereiro e julho de 2003. Mantém o blog guidalli.com.
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