(Elucubrações em tarde de calor nordestino)
Não uso brinco, não tenho tatuagens, não fumo, não bebo. Sou, portanto, o mais careta representante da nova geração de sobreviventes que passou dos sessenta. Claro, nem sempre foi assim. Antes de exibir os cabelos que me restam fiz um pouco de tudo, até cheirar lança-perfume nos bailes, quando isso era permitido, mas nunca fui além disso. A droga da vida já era um porre. Nem mesmo em Amsterdam, longe de tudo e de todos, ousei ir a fundo. Só queria saber por que tanta bicicleta nas ruas e como as pessoas conseguiam equilíbrio, diante de tanta bebida e devassidão. Não consulto horóscopos, raramente vou à missa, nem procuro saber a cor da calcinha da mulher do próximo. Basta saber a cor da que me honra com a intimidade. Honrava. Dependo das notícias, vivi delas muito tempo, mas até agora não pude ser portador de nenhuma novidade que pudesse melhorar minha vida. Muitos escritores sugam nossas almas e não nos pagam nada por isso. Aguinaldo Silva e Manoel Carlos, entre outros, nos devem alguns royalties. Pensei até em escrever algo como Páginas da (minha) Vida. Mas faltam-se talento e arte. Com a serenidade dos cabelos brancos, ainda posso brincar com as crianças e oferecer-lhes o que há de melhor no ser humano - bondade, caráter, boa formação moral... Pode ser que não adiante. É uma gota d’água no Oceano, mas é a bandeira que pode ser içada. Não necessito de armas para fazer nenhuma revolução. Nem de nada além de modesta coragem, se é que há coragem na modéstia. Não espero recompensa pelo bem que eventualmente pratiquei, se é que pratiquei, nem punição pela maldade em que me envolvi, se é que me envolvi. Caminho pelos parques e jardins com a cabeça erguida e o coração aberto, como um sobrevivente sem rumo, mas sem peias. Nota do Editor: Flávio Tiné é jornalista.
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