Não foram sempre ensolaradas as manhãs da minha infância. Lembro de uma, em especial, que parecia envolver a pracinha onde então morava com uma estola de nebulosidade tão clara quanto impenetrável. De fato, a cerração tomara tudo, a ponto de eu não enxergar quem passava por ali, mas foi à noite, quando despertei com uma insônia sem motivos, que o cenário de sombras e meios tons mais me impressionou. Tratava-se de uma partida de futebol, da qual via apenas os pés dos jogadores. Escancarei a janela, tossi. Ao perceberem minha presença, suas mãos emergiram da bruma num aceno a que me juntasse logo a eles. Por que não? Talvez fossem vizinhos, mas impossível reconhecê-los: o tom violáceo das faces e a neblina espessa confundiam tudo. A rigor, ignorava quem era do meu time! E com esses anônimos joguei até cansar. Quis, então, voltar a casa, e alguém me deteve com um toque firme, além de gelado, gelado demais. Só me soltou, porque outro garoto, magro quase só ossos, prontificou-se a entrar no time e logo ocupou a vaga. Quase dormia e ouvi gritos; de um menino, talvez. Mas do meu substituto? Corri à janela e nada mais vi, exceto a neblina se dissipando. Dormi, então, rapidinho. Porque era tarde e assim também me convinha. Nota do Editor: Daniel Santos é jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de O Estado de São Paulo e da Folha de São Paulo, no Rio de Janeiro, além de O Globo. Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
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