Enquanto um dedo aponta para o meu semelhante, dizia Seicho-no-ie, três outros apontam para mim mesmo. E o polegar permanece ereto, feito o juiz supremo que haverá de me julgar. Hoje tenho a mão cerrada, em posição de luta. O juiz supremo está caído e todos os outros dedos convergem para o centro do meu corpo. É o que nele está, suas sensações, seus medos e anseios, o que tenho de compreender, antes de buscar a sabedoria das estrelas. Quando você nasceu, leitor(a), todos o(a) viram como um ser banguela, ignorante e careca (exceto se você é um daqueles privilegiados que já nascem cabeludos). Talvez não sabiam que naquele corpo franzino estava toda a sabedoria do mundo. Ainda antes de você, quando nasceram o dinossauro e a borboleta, com seus membros articulados, suas vestes singularmente desenhadas, havia ignorância, faltava ao mundo sabedoria, técnica, sofisticação? Se era assim, uma total ausência de ciência, como se realizavam as complicadas inter-relações atômicas e moleculares? Onde estava, nesse período, esta elaborada Lei da Gravidade, ou a lei excelsa que move os astros em suas órbitas? Ou mesmo a lei que determinava a construção futura de um ser consciente de si mesmo? Quando avalia uma prova bimestral, o professor esquece que tem em mãos o testemunho de um ser extraordinário, elaborado no decorrer de milhões de anos. Se jamais entrasse na escola, ainda assim o garoto traria dentro de si a sabedoria do universo. Seu corpo realiza toda a gama de reações químicas e físicas, mesmo aquelas não descobertas pelo homem; suas pernas somam, dividem, multiplicam e subtraem todas as vezes em que lançam um passo na calçada; e por sua boca passam diariamente todas as regras e as contra-regras da gramática. Ainda que para alguns possa parecer um rústico linguajar, um sábio veria num simples gaguejo do menino analfabeto a expressão do gênio. Pensamo-nos capazes de evoluir a uma sabedoria suprema através de nossos artifícios, que faça valer esses cinqüenta ou oitenta anos de uma trajetória individual. Mas a verdade é que sempre estaremos sendo tocados por estímulos naturais, e no fim das contas o que nos leva para outro mundo é a mais natural das conseqüências do amadurecimento - apesar de toda a genialidade lotada nas academias de medicina, e de todas as máquinas criadas para segurar vivos os moribundos. Devemos buscar nossa plenitude no estado absoluto da chama, que não hesita em realizar-se enquanto consome o palito de fósforo. Quando penso em plenitude, lembro daquele homem que nada sabia, que se levantava na solidão ignota e punha nos olhos os brilhos da paisagem de seus ancestrais, pleno de existência, realização e morte. Mas a realidade dos dias é comumente mesquinha. O que transformam meus braços, meus atos, enquanto ando pela rua feito um rato em busca de queijo? Estou procurando significados e razões para uma existência, enquanto reviro meus escritos antigos, que nos últimos anos tornaram mais cultas as traças do gaveteiro. Em que interfiro na estruturação política do meu país, tomando café da manhã na ensolarada panificadora da cidade? As circunstâncias em torno de mim não me fizeram um renomado debatedor das coisas públicas. E ainda que tenha a morrer diante dos olhos o pinheiro, o rio e a juriti, não estou na mesa de discussões da degradação ambiental. A rua é quente sob o sol das onze horas. O sal se acumula entre os pêlos dos meus braços, enquanto os sinos tocam no alto da colina chamando para a luta. O mundo está em guerra e os cidadãos morrem perfeitamente, atacados de bombas. Que fosse malária, lepra ou tifo, mas bombas!? O escritor afegão radicado nos Estados Unidos é o maior vendedor de livros da atualidade, inclusive no Brasil. Outros o seguem, na linha editorial e no sucesso. O sangue derramado no Oriente Médio tem salvado muitos autores do ostracismo. Casimiro Reinaldo Barbosa ensinou-me sobre o Seicho-no-ie. Dias atrás fui ao lançamento de seu opúsculo, intitulado "Ninguém se sinta excluído do abraço do pai". Trata da história do próprio Reinaldo, um alcoólatra inveterado que maltratou a família durante décadas, até encontrar a tábua salvadora dos Alcoólicos Anônimos. Ao fim da solenidade, seu filho Reginaldo leu uns trechos do livro, e concluiu: "Pai, se fosse nascer de novo, eu queria ser seu filho". A lista de sucessos editoriais está repleta de tramas infernais, assassinatos e estupros. Tudo muito bem embalado em publicações luxuosas, que vendem muito e nada contribuem para o crescimento do espírito. Porque fala das coisas essenciais, do que é o homem passados seis milhões de anos, do que são seus vícios e suas esperanças, o livro de Reinaldo, no contexto da evolução humana, deveria estar no topo da lista de best-sellers. (Obs. Não sou adepto do Seicho-no-ie, nem de nenhuma denominação religiosa).
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