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Crônicas
07/06/2007 - 05h25
Romário, afinal
André Falavigna
 

Tive que esperar o máximo possível. Por diversos motivos. A longevidade de Romário é só um deles. A cada momento em que parecia conveniente falar a respeito do que foi Romário, Romário mostrava que ainda era. Depois, havia aqui aquele texto do Nei (Onde não há espaço, há Romário), que dizia muito do que eu gostaria de dizer melhor do que eu poderia dizer. E que, ainda por cima, me deixava um pouco sem assunto.

E, depois, o bendito gol mil teimava em não sair.

Mas ele veio. Sobrou o que tive vontade de dizer. É pouco, mas vai servir para este pequenino espaço, este quase não-espaço. Mais um ocupado por Romário.

Vou resumir as coisas assim: primeiro, veremos as críticas habituais que nos acostumamos a ouvir acerca de Romário. Na seqüência de cada apontamento, uma resposta. Não é que Romário não tenha defeitos, certamente ele os tem. Trata-se de verificar que boa parte das críticas a Romário revela não os defeitos do jogador ou do homem, mas as opções que muitos de nós fizeram e fazem diante da vida.

O gênero mais antigo, e que ninguém leva mais muito a sério, contém aqueles vários tipos de crítica que se resumem a contestar ou diminuir a qualidade técnica de Romário. Certa feita, Telê Santana, entrevistado por Jô Soares (acho que ainda no SBT), disse que Romário era "apenas um fazedor de gols". Flavio Prado, num Cartão Verde pouco anterior à Copa de 94, bateu nas costas de Edílson e lhe disse que, se fosse Parreira, o convocaria, e não a Romário, porque Edílson jogava a mesma coisa e causava menos confusão. O mesmo Flavio Prado chegou a dizer que Muller era muito mais jogador do que Romário, apesar de Romário ser mais, digamos, artilheiro. Deitem rapidamente os olhos sobre os arquivos de 93 a 2005 e os senhores verão milhares de exemplos do que estou dizendo. A coisa só arrefeceu quando, com quase quarenta anos, o homem foi o goleador máximo do Brasileiro. Flávio Prado redimiu-se ainda na Copa de 94. Mas não faltou quem persistisse na bobagem. Bobagem que desvenda o ranço que temos contra o individualismo, contra a iniciativa do homem só. Passei mais de dez anos ouvindo elogios aos times e campeonatos europeus porque seus jogadores "soltam a bola rápido, não dão mais do que três toques", "não ficam driblando" e "jogam para o time". Agora, a turma pede ginga, mágica e ousadia. Foi Romário quem ajudou a trazer essa gente de volta a terra. Qualquer retardado percebe que o futebol é um esporte coletivo, que sem apoiadores Romário não teria feito tanto. Mas é para isso que servem os coadjuvantes: para coadjuvar. Só um nazista não nota que o indivíduo só pode se destacar diante de uma coletividade.

Também vivem dizendo que Romário é desagregador. Não sei se é mesmo, deve ser. Pois em verdade vos digo: grande merda. De onde vocês tiraram que a idéia de que um grupo precisa estar "agregado" (o que esse pessoal quer dizer, afinal?) para alcançar a vitória (não sei se avisaram, mas é o objetivo final do jogo)? Trata-se de mais um preconceitozinho nojento que permeia o éthos de nossa intelectualidade. Temos que ser amiguinhos, não é mesmo? Balela. Houve muitos grandes times campeões cujos protagonistas simplesmente não se suportavam. Há ainda os que foram formados por gente que, na maioria dos casos, se dava bem. Se há gente que fica feliz em saber que os que eram mais coleguinhas venceram, é só isso mesmo: o gosto que há aqui por historietas cor-de-rosa. O que leva as pessoas ao sucesso, no trabalho, não são os vínculos de amizade que as liga, e sim a capacidade dessas pessoas aliada à entrega dessas mesmas pessoas a um objetivo que, acidentalmente, lhes é comum: vencer, vencer, vencer e, por último mais não somente, derrotar. Se, no meio tempo, tornarmos-nos todos amigos, tanto melhor - amigo nunca é demais. Se não, perdoem-me a má palavra: foda-se. A amizade, no trabalho, às vezes ajuda. Às vezes, atrapalha. Simplesmente não é um requisito. Quantas vezes, finda uma relação profissional, vocês não vêem gente que se odiava no trabalho construir fora dele as amizades mais inusitadas?

Ah, mas Romário não é humilde. Já disse isso antes: o que os camaradas querem não é humildade. É modéstia. Modéstia e humildade são coisas diferentes. Quando você pede a um sujeito para que ele pare de fazer observações realistas a respeito de si mesmo só porque essas observações são elogiosas, você está pedindo ao sujeito: seja modesto. Que você substitua essa palavra por outra, mais profunda e infinitamente mais tocante na sensibilidade popular, isso mostra que você é um analfabeto mui pouco humilde, ainda que abuse sempre da falsa modéstia. Aliás, cambada: modéstia é o cacete. Nem como virtude se garante. Vou ser um pouquinho pedante e citar Schopenhauer: "A modéstia, sem dúvida nenhuma, foi elevada à qualidade de virtude pelos idiotas, porque a eles pareceria muito agradável que cada um pensasse de si como se um deles fosse". Em outras palavras: a modéstia é a qualidade de quem não tem mais nenhuma outra. Dêem-me um único motivo para um homem que ascendeu espetacularmente da miséria à realização, por seu mérito, honesta e brilhantemente, para um homem que alegrou o coração de milhões sem prejudicar ninguém, para um homem que, tão logo abastado, tirou consigo centenas e centenas de uma vida de dificuldades das quais ele, inclusive, partilhou durante boa parte da vida, para um homem que atingiu níveis insondáveis na prática de seu próprio ofício, para um homem que não deve nada a ninguém e para o qual tantos devem tanto, para esse homem comportar-se como alguém que tivesse que se preocupar com as suscetibilidades de meia dúzia de asnos amargos e invejosos? Com todo o respeito, e aproveitando a ocasião para mais uma citação, desta vez provinda daquele que é o signo mesmo da mansidão e da humildade: não dá pra vocês irem cuidar da trave no olho de vocês antes de ficar reparando no cisco no olho do próximo? É que Jesus era muitíssimo bem-educado, porque a vontade que dá é de mandar vocês irem procurar a trave em outro lugar.

Ei, esse mil gols do Romário não são bem mil gols porque, veja bem, sob este ou aquele ângulo, segundo esta ou aquela conta, não são bem mil gols, sabe? Porque, veja bem, a imagem dele não é a mesma, sabe? Sei. Vamos deixar uma coisa clara a cada um dos babacas que acreditam de verdade que Romário desgastou sua imagem porque passou uns dez anos a mais do que eles gostariam enchendo o rabo de fazer gols: não confundam a imagem que vocês têm de Romário com aquela que o resto do mundo tem de Romário. Ainda não há uma lei que faça com que essas duas coisas imiscíveis, que são as opiniões cretinas acerca da vida e a mera observação da vida, coincidam obrigatoriamente. Romário foi maior do que vocês gostariam. Diminuí-lo, a fórceps e a posteriori, pode parecer muito tentador agora. Tem funcionado bem com Pelé, não é mesmo? É, tem. Mas com Romário, por enquanto, está dando errado. Romário fica maior a cada ano que passa. Pelo andar da carruagem, nos dará o prazer de infernizá-los por muito mais tempo ainda. Não sei como. Talvez seja até mesmo parando. Mas que vai, vai.

E, até o momento, Romário foi quase sempre o melhor condutor de si mesmo. Não acho que alguém esteja mais habilitado do que ele para resolver qualquer coisa a respeito dele próprio. Portanto, vão dar conselho para a puta que os pariu, compreendem? Ele pára quando achar que tiver que parar e pronto. Por que tem tanta gente que se acha melhor do que ele para avaliar uma coisa dessas? Tá faltando humildade aí, hein, pessoal... Já erraram tanto o prognóstico, e ainda se acham aptos a palpitar mais ainda? Mais humildade, galera, mais humildade.

A única coisa que me sinto obrigado a dizer acerca de Romário é um "muito obrigado, muito obrigado mesmo". Quando estávamos cercados por imbecis que davam nosso futebol por enterrado, que diziam sermos mais aptos para o automobilismo (houve quem desse bibliografia da coisa), que viam um futuro repleto de vôlei e de esportes radicais (são esportes do PSTU, é isso?), Romário foi lá e nos prometeu que poderíamos continuar chutando lata na rua, laranjas no chão batido, descalços, que continuaríamos os maiores onde todos queriam ser pelo menos grandes. Que não precisaríamos mais nos converter em algo que não envergonhasse meia dúzia de panacas metidos a sábios. Depois, Romário fez mais do que prometer: ele cumpriu a promessa em toda a linha, sem medo, generoso. Não fosse por ele, e hoje talvez estivéssemos tendo que passar as tardes de domingo vendo vôlei. Cruz, Credo e Ave-Maria. Imperdível: Pirelli Unimed Santa-Unicsul x Gessy-Lever São Paulo Barueri. Jesus, Maria e José. Entre um set e outro, chamadas sobre a circuncisão de Felipe Massa. É pra erguer estátua ou não é? Quem é que acorda cedo aí para ver as radicais (eu choro toda vez que tento entender isso) manobras do singelo Mineirinho? Por que esse cara tem esse apelido? É alguma espécie de come-quieto, só que radical (francamente, é incompreensível)?

Romário salvou minha adolescência e deu-me muitas alegrias durante minha vida adulta. Será, sem sombra de dúvida, uma das melhores lembranças que me acompanharão durante a velhice, se esta me for concedida.

Portanto, façam-me um favor, e façam-no na certeza de que o estarão fazendo a muitos: deixem-nos curtir Romário. Está acabando. Vai ser difícil explicar, aos que vierem mais tarde, o que esse homem fez, o que ele significava. Vai dar um trabalhão e ninguém quer saber disso agora. A gente só quer poder prestar atenção e aproveitar tudo o que ainda vier. Porque, quando tiver terminado, vai ser um vazio daqueles.


Nota do Editor: André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.

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