Num dos primeiros dias de trabalho na biblioteca, a estagiária sobressaltou-se com o cheiro de papel queimado que vinha, certamente, da sala do acervo, onde milhares de livros aguardavam eventuais leitores. Correu, então, para lá e, ao abrir a porta, quase perdeu os sentidos diante da imensa fornalha em que tudo ali se transformara mas, apesar de muito gritar por socorro, a ninguém mais parecia impressionar o sinistro. Deram-lhe, então, água com açúcar e, depois de acalmada, a chefe revelou-lhe o conhecimento que transformou a estagiária em profissional: na verdade, o fogo nada destruíra, apenas servira de alimento aos livros! "Porque assim é. Desde sempre. O escritor ousa penetrar o terreno do insondável e, ali, infringe as leis mais altas. Escolhe com critério o material comburente a que dará sentido e nos oferece o livro", explicou. Disse ainda à aturdida estagiária que, "desse tal fogo, iluminam-se razão e consciência, e por isso não vivemos todos na mais completa treva, naquele estado demais improvável em que nascemos e vingamos". Iluminada por tal revelação, a moça voltou à lide entre livros que, quietinhos nas estantes, espreitavam leitores com inflamável expectativa. Queriam o toque da palma morna para arder e produzir combustão. Nota do Editor: Daniel Santos é jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de O Estado de São Paulo e da Folha de São Paulo, no Rio de Janeiro, além de O Globo. Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
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