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Crônicas
13/06/2007 - 16h26
Deus e eu
Chico Guil - Agência Carta Maior
 

Em todas essas guerras religiosas
os ateus e os crentes atiram a esmo.
Ainda não perceberam que o Criador
está criando a si mesmo.

Sábado à noite. Acabei de levar a Jade para dormir, após ler para ela duas histórias do Chico Bento. Recostado na parede sobre o colchão, enquanto Audrey lê o Satiricon, começo a viagem pela linha incerta dos pensamentos, tecendo minha escada para o céu.

A paisagem em frente é o guarda-roupas, mostrando pelas portas sem trinco as peças que insistem e não se renovar. As mangas puídas, as manchas de tintas, retratam nosso status social: artistas famosos em fase de pupa. E pelos cantos da casa, quadros que um dia valerão milhões de dólares, ou pelo menos o suficiente para pagar a conta do telefone.

O problema maior com a pobreza não é a falta dos objetos que nos sustentam vivos, mas a sensação de alerta constante contra a possibilidade da morte. Se não pudermos adquirir cobertores, alimentos e remédios, seremos aniquilados, ainda que saibamos quase tudo sobre as últimas conquistas tecnológicas.

Na vizinhança há reuniões semanais para cultos de inúmeros credos. Seguidamente nos questionamos se deveríamos aderir a um deles, mas preferimos sempre adiar até o momento em que estaremos demasiado fracos para nos defender sozinhos das Forças do Mal, que, segundo um certo filósofo texano, existem.

A atmosfera lá fora está seca, os arbustos iluminados pela lua. Uma lufada de vento sobre os ramos de um arbusto mostra-me como ele está preparado, desde seus ancestrais, para reagir a estas investidas de Deus. As folhas todas se movimentam, em uníssono, vergam os pequenos galhos, e todo o conjunto se projeta na direção do vento, absorvendo o impacto num gesto singular. Depois retorna o arbusto e ao todo se aquieta, deixando o vento alastrar-se livre para outras paragens.

Era um sopro de Deus, e os gritos de Deus são trovões, um choro de Deus derrama a chuva, um gosto de Deus no café, no morango, na saliva que recobre a minha língua. Deus opera no silêncio, mesmo no histriônico rufar da cachoeira, no eterno rumorejar das florestas... na ausência da palavra está o silêncio de Deus.

Não posso compreender todos esses que falam n’Ele durante o dia inteiro, e mesmo de madrugada, se já nos Mandamentos está escrito que não se tomará "seu santo nome em vão". Quando vem um desses pregadores trazer-me a Palavra, aquele discurso de(s)corado e enfadonho sobre capítulos e versículos, onde se mata uma dúzia a cada página, de imediato anuncio que pertenço ao outro lado, e eles logo se afastam, com medo de que eu os leve para o inferno. Mal percebem que foram doutrinados nas coisas dos homens, pois no mundo de Deus não existem palavras.

Eu deveria elogiar todos os dias as obras do Criador, levantar monumentos às suas admiráveis criações, mas não faz sentido buscar ouvidos que não compreendem a minha linguagem. Restrinjo-me a este elogio dominical, para não esquecer a velha tradição em que fui criado.

Deus está na mata, movendo os líquidos, experimentando no passar dos séculos novas formações de flores, mil arranjos de asas de insetos, novos padrões de cores, mas nem o melhor dos meus versos é capaz de abalar sua escalada incansável. Se vou à floresta e berro os versos de Drummond, Vinícius, Pessoa, as folhas da vassoureira não se comovem. Se subo na mais alta copa de um sassafrás, e exclamo as mais doces frases de Werther, as formigas lá em baixo continuam imperturbáveis o seu labor.

Deus não ouve palavras, mas reage de imediato ao mínimo movimento das minhas mãos. Se derramo a água, Deus absorve juntando ao líquido os elementos dispersos na terra crua para levantar um impressionante pé de abóboras. Se bato com a foice no caule do cinamomo, Deus reage abrindo o corte, tombando o tronco, esfarelando a casca, espalhando as folhas. A resposta é sempre imediata, decisiva e absolutamente correta, sem julgamento, sem veredicto.

No olho de Deus, contornado pela linha do horizonte, a luz de sua íris muda de cor com a mudança das estações e se espalha no infinito. As estrelas derramam no cosmo os iridescentes lampejos da vontade de Deus, que se aprofunda na escuridão e engendra novos sistemas estelares. As mãos gigantes do Criador rolam as esferas, acendem os astros, e de século em século extinguem um sistema solar.

Deus meu, absorve meu pranto seco, ouve meu grito mudo, percebe meus gestos invisíveis. Canto num lugar ermo, escolhido pelos homens conforme a lei das probabilidades, como um grão de mostarda caído num canto qualquer. Para ser puro e viver amorosamente como os lírios do campo, devo chorar quando necessito de alimento? Ou o amor precisa de uma solicitação explícita, detalhando cada nuance, cada circunstância em que se manifestará!? Apenas um choro pungente do solicitante descreve o quando espera que lhe seja dado... pacotes de amor, ilustrados com flores, morangos e beijos!

Deus nos dá o amor na medida da clareza que mostramos, e da espera que nos permitimos.

(Para nosso filho que chega no final de julho).

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