Ela estava ali, oculta em meio a rotina, em meio a dezenas de outras cartas manipuladas com um certo automatismo pela jovem secretária. Ninguém poderia imaginar, mas ali estava algo singular e precioso, bem ali em meio ao "lixo" das outras correspondências: propaganda de cursos por correspondência, faturas de cartão de crédito, contas de luz, retorno de AR’s (aviso de recebimento), "canhotos" e protocolos, oferta de assinaturas de revistas, cursos de computação, propagandas, propagandas e mais propagandas. Eram dezenas e dezenas de cartas. Como Carlitos em Tempos Modernos, a jovem secretária, que, na verdade, é uma jovem estagiária fazendo as vezes de secretária (isso é muito comum na generalizada precarização do trabalho de nossos dias), tal qual um autômato, metia freneticamente a tesoura em todas cartas, abrindo-as, para só depois selecionar o que seria repassado ao seu chefe. Foi aí que percebeu o erro. Foi aí que notou que havia aberto, inadvertidamente, uma carta que o carteiro entregara, por engano, naquele endereço. A carta era destinada a uma mulher, talvez tão jovem como ela - desconfiaria depois - chamada Priscila e que morava em uma outra rua daquele mesmo bairro onde trabalhava. O que faria agora? Devolveria a carta violada ao carteiro, para que este a reencaminhasse ao verdadeiro destinatário? Mas o carteiro se recusaria, por certo, a entregar uma carta violada. Poderiam pensar ter sido ele quem rasgara o envelope! Violação de correspondência é crime previsto em lei. Rasgaria a carta, jogando-a ao lixo, livrando-se assim do problema. Mas e se ela comunicasse algo importante, urgente? O que diria aquela carta? Fora o crime de violação de correspondência, cometeria agora o pecado da bisbilhotice? Não resistiu à curiosidade (quem resistiria?) e leu a carta. Você não leria? Não!? Então, pule os próximos parágrafos, pois nela podia-se ler: Cid. de "Alvaro de Carvalho" Olá Priscila, tudo bem? Primeiramente desejo-lhe que ao receber esta simples e humilde mensiva, que a mesma possa encontrar você na mais perfeita paz, saúde e harmonia. Bom Priscila, espero que você não leve a mal por eu estar invadindo a sua residência e lar, mas gostaria muito de ser o seu mais novo amigo. Portanto gosto muito de fazer novas amizades e por isso resolvi escrever esta. Porem me sinto muito só, e gostaria que soubesse que, por um pequeno erro, me encontro privado da minha liberdade. Mas se Deus quizer vencerei este obstaculo. Gostaria, que por este motivo você aceitasse a realidade dos fatos! E respondesse esta que escrevo-lhe com muito carinho! Bom, como esta é a primeira que lhe escrevo, não vou falar muito, mas prometo que se eu obtiver resposta sua mandarei uma foto. Olha, já vou adiantar um pouquinho das minhas características: Me chamo Fábio, 27 anos, tenho 1 metro e 78, olhos claros, eu peso 77 kilos e sou da Penha, São Paulo. Espero que vc goste das minhas características! Desculpe-me por alguma coisa!!! Vou finalizando esta e ficando por aqui, com uma enorme anciedade de receber uma resposta sua. "Fica com Deus", você e sua família. Um grande beijo e uma abraço em seu coração. Fábio Aquela realmente não era uma carta qualquer, era uma carta de um presidiário buscando um pouco de luz em seus dias tão sombrios. Uma fresta, uma nesga de sol em seu cubículo úmido e imundo. Era uma mensagem de um homem "privado da liberdade", um desvalido, em busca da salvação, ou em busca de um lenitivo para a sua desgraça através do amor. Mas o amor, enfim, liberta ou aprisiona? Seria realmente pertinente uma resposta a uma pergunta como essa? Talvez essas sejam questões "filosóficas" em demasia para a compreensão daquele jovem homem encarcerado, para a doce Priscila, ou mesmo para a nossa aflita estagiária. O que a nossa jovem "violadora de cartas" não percebera é que, se jogasse aquela correspondência no lixo, interromperia seu caminho natural rumo ao destinatário e, de certo modo, interditaria o destino. Nunca as palavras destino, destinatário e correspondência estiveram tão próximas e imbricadas, encurralando a vida daqueles personagens, daquela adolescente que, de maneira desavisada, em meio a sua rotina, havia aberto aquela carta que carregava em si tantos significados e implicações. Ela poderia, se jogasse a carta no lixo, modificar, ou não, o destino de duas pessoas! Ela poderia estar impossibilitando um romance, ou um pouco de alento e esperança na vida de um encarcerado. É incrível como um simples gesto pode implicar em tantos desdobramentos. A jovem estagiária contou ao chefe a história do seu erro e de todo o tormento que aquele problema estava lhe causando. O chefe então a orientou, não a devolver a carta ao carteiro, muito menos jogá-la no lixo. Orientou-lhe a preencher um novo envelope, copiando as informações do destinatário e remetente do envelope original, colocar a carta nesse novo envelope, fechá-lo, apor um novo selo e encaminhá-la novamente por intermédio dos Correios, devolvendo-a ao seu fluxo normal, como se nada tivesse acontecido. Assim, aquela carta de baralho (do tarô de uma cigana qualquer) e os dados do destino estariam de novo lançados na camurça da vida. Um lance de dados jamais abolirá o acaso - já disse uma vez o poeta. A vida tem mesmo nuanças de um jogo. Natália (esse é o nome da jovem estagiária) ficou feliz ao perceber que seu problema não era assim insolúvel e gostara da solução apresentada por seu chefe - por alguns instantes chegara a temer ser presa pelo "crime" cometido. Mas ela em seguida cometeu um novo equívoco e deu margem a mais uma falha na intrincada teia dos fatos: Natália não foi pessoalmente levar a carta a uma agência do correio mais próxima, ela a entregou ao seu pai, taxista, para que postasse a carta, pois, nas suas palavras, "ele vive na rua mesmo". Teria o pai da Natália postado a carta realmente? Ou seria ele um homem, como tantos, dotado de imenso "senso prático" e, por isso mesmo, achado descabida, e desnecessária, aquela missão que lhe fora transmitida pela filha caçula? Teria jogado então a carta no lixo? Será que Priscila, o tênue fio de luz e esperança do presidiário Fábio, terá recebido a mensagem a ela destinada? (Ah, as ciladas do acaso...). Será que ela, tendo recebido a "mensiva" - como disse em sua carta o pobre homem, usando, a seu modo, um "charmoso" arcaísmo -, (cor)respondera? Será que se iniciou ali uma amizade, um romance? Pena que todas essas perguntas ficarão sem resposta. A vida não é uma novela. A vida é assim mesmo, e é bom que assim seja, cheia de perguntas e com tantas, e também, paradoxalmente, tão poucas respostas possíveis; cheia de mistérios e devires.
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