“Nós homens somos uns desvalidos, uns desgraçados mesmo”. Essa terrível imprecação me foi proferida, há muito tempo, por um colega de colégio e, volta e meia, retorna a minha mente, como uma maldição, um estigma. Na verdade, essa frase – lembro-me bem – escorreu silenciosa por entre seus lábios, como um sussurro, como uma coisa que não deveria jamais ser revelada, uma sentença mal dita. “O quê!?” – indaguei-lhe. “Nada não... Nós homens somos uns babacas mesmo... Entende agora?” – disse, encerrando a conversa. Ao conhecer aquela mulher, e ao me ver envolvido por ela e seus laços melífluos e invisíveis de encantamento e sedução, lembrei dessa frase. A frase que me causara tamanha perplexidade, e que me soara como a sentença de um condenado: por que os homens seriam uns... desgraçados? Sim, somos mesmo uns desgraçados. Mas por que os deuses assim nos condenaram? Por que tanto medo e perplexidade diante das coisas do mundo? Por que tanta dependência em relação às mulheres? Por que desejamos tanto possuí-las? Será que se deve ao fato de, desde o início, por elas termos sido acolhidos, alimentados, criados e protegidos? Difícil dizer... Por que, em nós, essa alma tão frágil e ao mesmo tempo tão embrutecida? Ah sim... Devo-lhes falar um pouco mais sobre “aquela mulher”. Ela me enlevava com sua dedicação e afetos, com sua pureza e generosidade, e com suas doces palavras. “Eu te amo. Você é o homem da minha vida. Eu te reverencio” – dizia. Assim, com a música das suas falas, envolveu-me em suas pernas alvas, em seu sexo – que dizia sagrado. “Não o sagrado ‘místico’, mas o sagrado mundano” – fazia questão de ressalvar. Mas ela não amava só a mim. Amava aos homens. Ah, essa minha desgraça de ser homem! E agir como tal. Por que somos desprovidos de toda compreensão e compaixão dos deuses e dos homens santos? Um dia, não segurei a onda e brami as minhas “verdades”. Expulsei-a do meu mundo. Atirei-lhe a primeira pedra. Primeira? Pensando bem, quantos homens, e mulheres, já não lhe haviam atirado as pedras do julgamento. Como com Maria Madalena. Por que desejamos possuir a quem amamos? Ah, essa espécie de fascismo do afeto que nos transforma em feitores, em senhores de escravos. “O seu amor, ame-o e deixe-o / livre para amar. / Ame-o e deixe-o / ser o que quiser / ir onde quiser...” Hoje, arrependido de tamanha rudez e incompreensão, penso nela com imensa ternura e culpa. E a absolvo de seus improváveis pecados. Há muita dor, pureza e beleza na alma de um pecador, apesar de só vermos nelas vício, pecado e devassidão. A miséria e misericórdia dos pecadores. Era apenas uma mulher. Uma mulher que sabia em cada homem um filho de Deus, um sofredor, e por isso os acarinhava e embalava num estranho acalanto. Uma mulher que enxergava em cada homem um mundo diferente, sua riqueza e indigência. Talvez fosse mesmo isso o que tanto lhe fascinava: o fato de cada homem se revelar diante dela como um novo mundo, frágil, porém sedutor e singularíssimo. Ela que ocupava os seus dias “cuidando dos homens”. Cuidando dos homens ela parecia cuidar de si mesma. Reproduzo aqui um pequeno trecho de uma de suas cartas: “A consciência de minha própria singularidade, e o conhecimento de tantos mundos, longe de trazer-me tranqüilidade e segurança, lançou-me numa prazerosa corda bamba, onde o que menos procurei foi o perfeito equilíbrio. Mas as quedas, não poderiam se dar de forma constante. Mesmo bêbada, evitei as linhas retas... os desvios atraem-me deveras." Muitos homens, muitos lugares. Mundos estranhos que, como uma forasteira, visitava. O universo impenetrável (sim, indevassável) do outro. Uma mulher que se aprazia em comungar/acalentar, de alguma forma, o universo do outro. Penetrar no outro e amar suas entranhas. Amar o insondável. Amar, não o que de si há no outro, mas amar o outro em si. Daí tantos amigos, tantos homens. O que são essas pobres criaturas, os homens? De que são feitos? Do mais maleável barro? Como eram plácidos e meigos, como crianças, quando se desfaleciam num gozo entre suas pernas magras, alvas e lisas. Pernas de mulher, corpo de mulher! Mulher louca, lúcida; mulher estranha. Santa, pecadora. A mulher “com olhos de noite”. Dona do mais suave acalanto, que embala o sono e a alma intranqüila dos homens. O que seria dos homens sem essa(s) mulher(es)? Todos, homens e mulheres, seguimos envolvidos pela santidade do sexo, do amor. (Des)Norteados por essa “loucura”, caminhamos “perdidos”, como crianças numa campina. Caminhamos rumo ao sol, rumo a sagração. A sagração do amor e do sexo. A sagração da vida. Que a misericórdia conforte o homem nesse seu eterno paradoxo, no tênue limite entre o êxtase e o infortúnio. Nota do Autor: Publicada em sua primeira versão, em 2003.
|