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SEÇÃO
Crônicas
22/06/2007 - 18h00
Viagem sem volta
Helena Sut - Agência Carta Maior
 

Viagens de ônibus que atravessam a madrugada traduzem a realidade das distâncias, incertezas de caminhos e desejos. Angústias que se confessam e se escondem no desejo único de chegar.

Foi numa destas longas jornadas noite adentro que conheci José, figurante melancólico da vida e protagonista do retalho que costuro. Ele ocupava a poltrona do meu lado. Logo que chegou, percebi que era um daqueles passageiros que não se contém em si e resolve compartilhar as revistas, a vida e as infelicidades. Não sei bem como nossa conversa começou, mas o diálogo, quase um desabafo, permaneceu até hoje incompleto em minhas reminiscências.

“Moro no Rio de Janeiro há doze anos, mas sou de uma cidade perto de Itajaí. Vou para o batizado do meu neto em Blumenau e para passar o tempo faço trechos separados do percurso. Saí de Campos em direção ao Rio de Janeiro. Cheguei ao meio-dia e peguei um ônibus circular. Fiquei dando voltas na cidade para passar o tempo. Quando anoiteceu, voltei para rodoviária para pegar o ônibus com destino a Curitiba...”

“Não tinha ônibus direto para Blumenau?”

“Tinha... Mas... Quando chegar em Curitiba, irei dar umas voltas na cidade para passar o tempo e depois pegarei o ônibus de meia-noite para Blumenau. Chegarei cedo no domingo, justamente no dia do batizado. Apenas passo o tempo. Estou de férias. Não tenho pressa de chegar nem de voltar. Na verdade, faço isto para o tempo passar mais rápido. Sou muito solitário, minha vida não tem muito sentido.”

“E os seus filhos?”

“Quase não temos contato. Eles são mais ligados à família da mãe. Separei-me há doze anos e me mudei para o Rio de Janeiro para não incomodá-los. Deixei tudo. Sou de família muito humilde. Comecei a estudar tarde e tive de parar quando engravidei minha namorada. Ela já tinha terminado os estudos... Assumi a responsabilidade e passei a trabalhar tempo integral numa loja de consertos de eletrodomésticos. Com o tempo comprei a loja, mas já havia encerrado o tempo do encantamento e, no olhar de minha mulher, permaneci como o consertador de mãos sujas. Ela, depois de ter os três filhos, foi para faculdade. Logo no início do curso, nossas diferenças foram aparecendo, não tardou até sermos água e vinho - uma doutora e um semi-analfabeto. Eram mundos inconciliáveis...”

Suas últimas palavras suportaram a intenção do pranto tantas vezes adiado. Estávamos no meio do percurso. Ele olhou para frente e passamos o resto da viagem em silêncio. O tempo não passava e cada farol ofuscava meus olhos e iluminava nosso constrangimento. O luto da possibilidade, ostentado em vida – luto que cobre os espelhos de obscuridades e que impede o homem de ver o que é, identificando-se apenas no não-ser.

Quando chegamos a Curitiba, José se despediu timidamente. Ainda pude vê-lo, sob o dia cinza e chuvoso, no ponto de ônibus. Provavelmente passaria o dia, tentando transpor o tempo na cidade das flores velando as horas mortas.

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