Faz tempo, estive no cemitério para homenagear gente querida do passado e percebi uma verdadeira multidão reunida com expressão de desamparo em torno a uma cova rasa que desprendia ainda o fogo-fátuo. Na certa, um defunto fresco, enterrado na véspera. E, na certa, alguém de certa intensidade, porque eram quase labaredas aquelas mechas violáceas que evolavam intensas a uns 40 centímetros acima da terra. Intrigados, os coveiros acorreram para desvendar o mistério e para dispersar o povaréu em prantos. Em prantos como carpideiras, embora todos ignorássemos a identidade do morto. Ou apenas eu não sabia? Começaram a escavar e, em minutos, deram com a tampa do caixão - um caixão simples, de madeira barata, sem uma camada sequer de verniz. Tratava-se de alguém pobre, desvalido, quem sabe um indigente. Essa descoberta comoveu ainda mais a multidão... chorosa como quem pranteia o próprio pai! E, assim, na iminência da abertura do caixão, ajoelharam-se quase todos, rezando sibilantes, agarrados a seus rosários. E logo se viu: organizados lado a lado como numa estante horizontal, livros, muitos livros, centenas deles, quedavam inúteis, porque sem manuseio. Sem reagir, ardiam no incêndio da própria consumição! Nota do Editor: Daniel Santos é jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de O Estado de São Paulo e da Folha de São Paulo, no Rio de Janeiro, além de O Globo. Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
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