Sete ruas, 85 janelões em estilo colonial, uma poeira de manchar até saudade. E fama. Muita fama. Tatajuba sequer constava do mapa, mas haveriam de cantá-la bem longe de lá. E com ares de quem assopra novidades em vento bom. A notícia se espalhando morro acima. Razões eram para lá de sinceras. Mais que isso: singelas, porque jamais se ouvira falar de um esplendor assim. A gente franzia o cenho, mordiscava os lábios, custando a crer, quando se começava a descrever. A menina negra, lembrando princesinhas da Mãe D. África, iluminando as manhãs do lugar. De Camila fora batizada. E avançara os anos simplesmente Mila. Dela se conhecia pouco, mas o essencial: filha de Tião e Isabel, neta de Paulo e Sinhá. Aprendera a ler aos 2. A cantar afinado aos 3. E, aos 5, já se transformara em minicelebridade. Não pelo canto gregoriano naquelas bandas do nada, ou pelas leituras de Camões em praça pública. A floração era seu segredo maior. Surgira despretensiosa, num setembro de chuvas fininhas e duradouras. Destas em que o arco-íris, fim de tarde, esboçava sua circunferência. E juravam que era nela que uma das pontas nascia, ou, sabe-se lá, repousava. Se enganavam, porém, os que presumiam que o arco-íris fosse a chave do arrebatamento. Era, no fundo, o prenúncio dela. Percebam Mila pequenina, tranças delicadas, cheiro menino de alecrim, em meio à multidão. E, agora, o que encanta e cai na conta dos mistérios: os ramos de margaridas brotando-lhe candidamente à cabeça. Ganhariam dimensão de milagre num piscar de olhos. E deram de se repetir mês a mês. Levando o povaréu a cavalgar léguas, cravar remo pelas corredeiras, ganhar calos nas andanças. Logo se descobriria que os botões – porque jamais haviam florado por completo – tinham doce destino. O de incensar amores. E uma só mão, a de Mila, faria com que chegassem a seus donos. Elegeria candidatos e candidatas na longa fila. Todos daí transformados em nobres centelhas de sentimento. Destas capazes de despertar até o pólo norte do amor. Saíam dali em direção a alfaiate e costureira casamenteiros. Não sem antes se darem conta da peculiar missão a cumprir: dançar o forró da noite com eternos desacompanhados, porque tudo aquilo não haveria de ter outro símbolo, que não o de justa bandeira da alegria. E que cuidassem, em casa, de elencar vaso que fosse morada acolhedora à flor daquele dia. Com um senão: brotando, condição primeira para confirmar namoro, jamais desmembrassem as pétalas para um bem-me-quer, malmequer. Ai dos infelizes que o fizessem, condenados à solidão impiedosa. Assim, com ramos convidativos ganhando as sacadas, fazendo história, Mila foi tomando outras formas. Coxas se torneando, seios moldados em delicada taça. Até nela emergir o que encharcava a todos – o aboio do desejo. Era ela ao ritual, criteriosa na entrega dos botões e, como a platéia, também neste instante seduzida pela fragrância do querer. E como queria. Topou, naquela manhã, com seu contrário. Anverso. Decididamente albino, desenhando contraste a sua negritude africana. Bastou um olhar. E a coleção de margaridas desabrochou, espontânea, pendendo-lhe como estampada coroa. Era primavera em Mila. Deu-se silêncio repentino. Ela tomou aquelas mãos alvas. Sequer sabia-lhe o nome. Mas nutria outras certezas. E essas, lembrando ao longe aroma de jardim amanhecendo, lhe bastavam por inteiro. Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia, onde publica às quartas-feiras.
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