Responsabilidade da sociedade e da escola com a criança
Começou a ser estuprada pelo pai quando nem tinha 12 anos. Mesmo na pouca idade a menina sabia, em silêncio, que a mãe sabia. Sabia e se calava. Fechava os olhos àquilo tudo e levava a vida como se nada acontecesse. Sem haver com quem contar, a pequena vítima crescia rascunhando as coisas de normalidade, em defesa de sua resignação. Aos 18 anos, a moça que se formou sendo todos os dias usada pelo pai como depósito de uma perversão sem defesa decidiu que passara a gostar daquilo. Assentiu, de uma vez por todas, deixar de ser filha e se tornar mulher do algoz. Transformou a bizarrice da situação numa pretensa vida normal. Teria filhos, com o pai, que ao mesmo seriam netos e cresceriam com seus conceitos distorcidos, quiçá garantindo a continuação de uma saga de promiscuidade silenciosa, travestida até de convenção. Pai e filha expulsaram de casa a esposa e mãe. A conivente daquela situação monstruosa, que se assim era por medo de fosse lá o que fosse, nada podia haver que justificasse o silêncio, a omissão por tantos anos. Devidamente punida ela tomou rumo ignorado e foi ruminar suas mágoas e seqüelas longe da família exótica e patológica da qual fora excluída. O castigo natural do pai marido da filha fica para depois, em algum tempo que ninguém sabe. Ainda recuso-me a crer que o destino seja tão brando com quem pega tão pesado e passa sobre tudo e todos para realizar seus intentos escusos como se as leis do universo conspirassem a seu favor. Isto parece ocorrer, mas continuo relutando e querendo estar enganado. Quanto aos vizinhos, amordaçados pela covardia, pela acomodação, continuam contribuindo para o agravamento de uma sociedade recheada de monstros. Faz o mesmo a escola, inchada por mestres que não se arriscam, não são babás e não ganham pra isso. Mal sabem eles que suas casas também estão vulneráveis às mazelas dessa sociedade para a qual decidiram lavar as mãos. Nota do Editor: Demétrio Sena é escritor e redator do jornal O REDATOR, de Magé-RJ.
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