Há, sim!, um momento em que se pode tudo. Enquanto o capeta atenta outros mundos e Deus abaixa para coçar Seu pé, ocorre breve pausa na permanente vigilância. Podemos, então, ser plenamente nós mesmos. Muitos não suportam e até se assustam com a inesperada liberdade: em vez de exultarem, recatam-se como cativos, aguardam na servidão voluntária a aprovação daquele olho que tudo vê. Para eles, isso basta. Há, no entanto, quem se desvencilhe da imobilidade e desembeste por aí num tropel libérrimo, quase lúbrico, sem dono nem nome, em busca de um sentido humano para suas vidas. Hereges, mas túrgidos de desejos. E foi assim que vi dia desses na feira uma velha de casaquinho puído nos cotovelos. Olhava com avareza e gula um monte de maçãs argentinas e, quando o vendedor vacilou, meteu uma delas na saca. Depois, saiu de mansinho. Levava em sigilo o objeto do desejo, seu insuspeitável banquete. Deus e diabo nada viram. Satisfeita e sem culpas, ela estava limpa, ou assim se sentia. E, de si para si, a marota ainda sorria. Nota do Editor: Daniel Santos é jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de O Estado de São Paulo e da Folha de São Paulo, no Rio de Janeiro, além de O Globo. Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
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