| Arquivo MS |  | | | Guiomar Novaes, pianista brasileira, 1894-1979. |
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Para Guiomar Novaes, de São João da Boa Vista, considerada por muitos a maior pianista de todos os tempos.
Escuta: é Guiomar que nos toca. Por Santa Cecília, quem é essa menina que sai de sua província ao pé da Mantiqueira para meter assombro em Ravel e Debussy? Os dedos meninos de Guiomar aos 13, flanando espertos sobre o ébano e o marfim, desconcertante em seus concertos na Paris da Belle Époque. Andante Cantabile. A respiração suspensa da platéia, tudo em volta silencia para a ela dar ouvidos. A virtuose Guiomar tem o condão da hipnose coletiva, voa e faz levitar. Solda-se ao negro Steinway de cauda e faz brotar avencas das sonatas de Beethoven. Põe a nu o que Chopin escondia atrás das semicolcheias. Transforma Schumann em pintor impressionista, nas mil duzentas e vinte e nove paletas de cores que arranca da partitura. O pentagrama são fios onde pousam garças raras, na clave de Fá o ouvinte cai em Si. E seja Lá o que Guiomar quiser, precisamente e tão somente o que quiser. Saia do enlevo por um instante e repare bem no que se passa. Ao contrário do que parece, não é Guiomar quem se debruça ante o teclado, e sim uma dublê da diva. A partner que desvia a atenção do público para perpetuar o truque. Assim que a música começa, a verdadeira intérprete desce à platéia sem que a vejam, nos toma pela mão e nos leva por sendas intrigantes e desconhecidas, trilhas que ela abriu e às quais se adentra por seu exclusivo intermédio. Não sei, ninguém sabe e possivelmente nem ela fazia idéia do que de fato acontecia quando a mulher e o piano se enlaçavam, e o que esse enlace era capaz de provocar. Só sei que toda vez que o sol desperta, nessa São João quase-Minas, é Sol Sustenido Maior em Allegro Molto Vivace. É o astro-rei nos lembrando a estrela maior da terra. Os “vivas” e “bravos” não param com o cerrar da cortina. Há flores no camarim. Não consegue acabar de ler o cartão, tem de voltar ao palco para o terceiro bis. “Melodia de Orfeu e Eurídice”, de Gluck. Perfeito para dar à noite Gran Finale. Guiomar não se bronzeia, não vai às compras, não sabe trocar marchas no automóvel, não aprendeu a fazer arroz nem bico de crochê. Não tem noção de nada prático porque é operária da vida etérea, produzindo encantamentos como quem aperta parafusos. A Guiomar dos palcos desprezava pedestais. Por mais artista que fosse, permanecia artesã. Último movimento: Adagio con Molta Espressione. Guiomar fria, quem poderia supor, logo ela que era o avesso da frieza. Sai do casarão da Rua Ceará para o Cemitério da Consolação. Foi quando os deuses, deste e de outros mundos, reunidos em concílio, selaram inapelavelmente o destino do piano. Colocaram o feltro vermelho sobre as teclas, fecharam o instrumento e esconderam a chave para sempre.
Nota do Editor: Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário em Campinas (SP), beatlemaníaco empedernido e adora livros e filmes que tratem sobre viagens no tempo. É colaborador do jornal O Municipio, de São João da Boa Vista, e tem coluna em diversas revistas eletrônicas.
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