Não entendo nada de aviação, de segurança em transporte aéreo, de segurança em transportes em geral e, por último mas não somente, de segurança propriamente dita. Isso é uma coisa. Vejam: esse meu sofisticado arsenal de ignorância me impede de dar palpites acerca das providências a serem tomadas para que essa situação toda seja, digamos, superada. Não, não posso dar palpites e, mais ainda, devo me conscientizar: sou perfeitamente incapaz de compreender, sob o aspecto técnico, o que acontece a esses aviões que insistem em cair assim, sem mais nem menos, nos lugares mais improváveis, nos momentos mais inconvenientes. Isso ainda é a mesma coisa. Mas há outras coisas que não são essa coisa e que merecem um ou dois minutos de atenção. Tenho dedicado até mais do que um ou dois minutos de atenção a tais coisas, e elas estão me deixando um tanto desconfortável. Vamos ver se o mesmo ocorre aos leitores. Peço-lhes atenção por um ou dois minutos. Não é muito, nem pouco. Em menos tempo, derruba-se um avião. Em mais, faz-se as causas e efeitos de uma grandeza dessas perderem-se, cambaleantes, na neblina sonsa do esquecimento. Prometo ficar na medida. Não preciso entender de aviação, segurança ou transporte, ou mesmo de dois ou mais desses elementos, conjugados ou não, para compreender que, se vamos voar, devemos tomar uma porrada de cuidados antes, durante e mesmo depois dessa aventura. Qualquer pessoa pode perceber isso: os aviões ficam lá no alto, não têm onde estacionar, estão sempre em alta velocidade, não podem brecar e pesam muitas e muitas toneladas que, inevitavelmente, devem ser trazidas sem maiores traumas ao solo de onde saíram. Se a gente não toma cuidado, pode se dar mal. Porque as dimensões nas quais essa atividade se encontra são sempre maiúsculas, sobre-humanas, massacrantes. Todo mundo tem tudo isso muito claro na cabeça. Também sou capaz de compreender o seguinte: fatalidades acontecem, o controle total de todos os fatores da vida é, além de impossível, uma tentação perfeitamente demoníaca; se queremos voar, temos que arcar com certos riscos, e patati, e patatá. Estamos todos sabendo dessas questões. Vamos trabalhando com elas. Mas há ainda mais questões envolvidas e que estão muito ao nosso alcance sem que, para assimilá-las, alguém precise ser versado em profundos conhecimentos esotéricos e sacrificiais. A mais óbvia delas é a seguinte: todo mundo notou que esse troço de voar virou a casa da Mãe Joana. Ninguém é tonto. Todos aqueles vôos atrasados, aquelas ameaças dos controladores, aquelas filas, aquelas declarações das autoridades, os alertas, os memorandos, os avisos. Ora, a coisa não vinha bem. Dois acidentes desse porte, no mesmo país e em menos de um ano, é coisa inédita. A redução do orçamento destinado ao setor é fato, está lá nos documentos do governo. Ora, orçamento é sempre matéria para técnicos. É, é verdade. Por outro lado, qualquer adulto sabe que quando destinamos menos dinheiro a uma determinada atividade nossa, ou é porque já estamos no estágio em que queríamos estar, ou é porque temos outras prioridades e preferimos desprezar essa atividade em prol de outra qualquer, à qual emprestamos mais valor. Qualquer dona de casa percebe a seguinte equação: se prefiro enriquecer a dieta da família a comprar um cachorro bravo, tenho que tomar mais cuidado com gente que queira invadir minha casa porque, a despeito da família toda manter-se mais nutrida, ninguém por isso irá adquirir hábitos noturnos, começar a latir e muito menos a morder gente que queira pular-me o portão na calada da noite. Se coloco menos dinheiro na segurança dos vôos, ou é porque ela vai muito bem, obrigado, ou é porque tenho mais o que fazer da vida. Ora, me dirão, você está sendo muito óbvio; ao que responderei: essas obviedades todas se destinam exclusivamente a servir de intróito para a seguinte afirmação: Aos camaradas que insistem em argumentar conosco, os ignorantes, atirando-nos na cara nossa incontornável condição de leigos para, em seguida, nos garantir que a zorra toda que estamos vendo sob nossos narizes nada tem a ver com esses acidentes escabrosos, fiquem os senhores sabendo que tal procedimento, além de improfícuo, acabará por lhes render um sonoro e mal-educado convite à casa do cacete. Por vários motivos. O mais importante deles é o seguinte: caíram dois aviões cheios de gente em menos de 12 meses. Entre o primeiro e o segundo, voar virou uma tortura porque se dizia que não havia segurança e que as demoras em todo tipo de procedimento visavam atenuar riscos. Controladores entraram em greve, aparelhos falharam, aviões derraparam e uma centena de coisas que não sabíamos acerca do mau estado de nossos aeroportos foi revelada. Meio mundo avisou: do jeito que está, desgraças podem acontecer. Há poucos anos atrás, não poderiam. Agora, podem. Daí, uma desgraça aconteceu. Ponto. Não é preciso ser gênio para reparar que as pessoas que cuidam da aviação no Brasil estão fazendo merda atrás de merda. Ah, mas a TAM tem culpa no cartório. Jura? E daí? A TAM é só a nova versão dos pilotos do Legacy. Vai pagar inteiro um pato do qual deve as asas e, quiçá, uma sobrecoxa magra. O azar dela (ou sorte nossa) é que está no Brasil e daqui não poderá se mandar. Há quem ache que alguma notícia, de algum lugar do mundo, virá e lhes permitirá sair por aí fazendo top-top-top e dando craw para todo lado. Acham que o governo é um time pelo qual a gente pode torcer. Acham que devemos ao nosso ideário aquilo que devemos ao nosso clube de coração: fidelidade. Não sei bem o que se pode fazer com esse tipo de sujeito, nem com quem teve a idéia de condecorar quem quer que fosse do governo sob o pretexto de reconhecer serviços prestados à, Deus meu, aviação. Parece coisa saída de Laranja Mecânica ou de 1984. A única coisa que tenho certeza é que a abolição dos castigos físicos é uma incivilidade absurda contra a qual só se podem levantar preconceitos reacionários. Não penso em alternativa mais cidadã às nádegas de Marco Aurélio Garcia do que umas boas 500 chibatadas fortemente inclusivas, progressistas e solidárias. Mais dois grupos de camaradas merecem a Roda, o Garrote ou até mesmo o nacionalíssimo Pau-de-Arara. Do primeiro, fazem parte as pessoas que acham que essa má imagem que resta do governo, nesse assunto, é "culpa da imprensa". Ora, vão pastar. A imprensa pode muito bem não gostar de Lula (coisa com a qual sequer concordo): ela não administra a aviação no Brasil. Vão dizer o quê? Que a coisa melhorou nos últimos anos? Ou que os aviões agora caem como mariposas porque os governos anteriores não investiram em educação? Ao segundo pertencem os engraçadinhos que, após o acidente da Gol, se puseram a fazer continhas que insinuavam ser muito pequeno o número de pessoas prejudicadas pela crise da aviação, além de serem elas todas pertencentes às "elites", como se essas duas meias-verdades não só justificassem toda a situação (sabe como é, precisamos é de mais escolas e de menos presídios e aeroportos) mas fossem, até, gostosinhas. Algo nessa linha: olhem, esse governo não perde tempo com quem anda de avião, viu? Só tem olhos para os pobrezinhos, porque de avião a gente cuidou 500 anos e agora vamos cuidar de pessoas, compreendem? Que coisa boa. Trata-se de um raciocínio tão estúpido quando cruel. É aquilo do torcedor, de quem acha que há um jeito de se ver o mundo que certo dia a gente escolhe para depois ficar com ele a vida inteira, na base do é "nós" contra "eles". O juiz é sempre ladrão, o inimigo é sempre o mesmo, o mocinho também e tudo é muito simples e sempre vai muito bem enquanto não for à nossa bunda. Vamos ser claros: o governo cuida da aviação no país, que vai mal porque o governo acredita que o dinheiro aplicado a essa área é o que os antigos chamavam de "dinheiro ruim". Daí, os aviões começam a cair cheios de gente dentro, porque é o que acontece quando não se põe dinheiro nessas coisas. As pessoas, que são mui frágeis (sabe como é que é burguês, né, gente?) acabam todas morrendo como se fossem moscas sob chineladas pachorrentas. É só isso e mais nada. Pensando bem, aqueles dois esbirros têm até muito senso cênico: é top-top-top e craw mesmo, e aí? No fundo, foi super iconoclasta, revolucionário, o tipo de coisa que denuncia o statu quo capitalista. Estão prontos para o teatro experimental, os camaradas. Vão acabar até mesmo incensados pela crítica. Quem viver, verá. Nota do Editor: André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.
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