Um dos assuntos intrincados da semiologia, da sociologia, da filosofia, da psicanálise, da antropologia, da História - a relação entre a produção de pensamento e o fato - foi prontamente resolvido pelo jornalismo televisivo. O que se passa na cabeça da pessoa que ganha o ouro e sobe no pódio ao som do Hino Nacional? Qual a sensação de estar na final? O que sentiu na hora em que fez aquele ponto decisivo? No quê ou em quem pensou quando finalmente venceu? Como é um tipo de pergunta irrespondível, exatamente porque a resposta é um mistério que ocupa as ciências humanas, então se estabeleceu um consenso sobre pensamentos e sensações que povoam a mente dos atletas na hora do bem bom da vitória. Esse consenso é o discurso formatado com antecedência, já que todo competidor sabe qual será a pergunta feita, invariavelmente, logo depois de receber a medalha. O escândalo é que a redundância, a reiteração da pergunta sem resposta cabível, é proferida num tom de absoluta novidade. É como se perguntassem sempre pela primeira vez! Chegam a inventar preparações antes do núcleo da pergunta, enrolam um pouco antes do "como é que você se sentiu"? É que a mídia está convencida que faz História, eis o problema. Os jornalistas têm absoluta certeza que estão cobrindo momentos históricos, que não passariam de imagens clamando por uma legenda. A legenda é exatamente a resposta à pergunta "como é que você se sente neste momento?" No entanto, sabemos que os fatos, em História, são incomensuráveis e só podemos nos aproximar deles com uma metodologia, ou seja, com o rigor do método de abordagem, do que já foi descoberto por autores clássicos ou se desenvolveu a partir dessas fontes obrigatórias. Você não faz História simplesmente apontando uma câmara ou perguntando. Você, nesses casos, está apenas multiplicando as fontes para a História. Mesmo a filmagem do momento decisivo do gol é uma representação, jamais o fato, que se perde. A História é o que você produz de pensamento na captura do fato desaparecido, apoiado nas fontes disponíveis e obedecendo (ou recriando) uma metodologia. É muito complicado para quem se acha no poder e que vive inventando momentos inesquecíveis todos os dias (e sabemos que as faculdades de jornalismo não ensinam de fato os princípios das ciências humanas). O grande equívoco começou com o slogan do Repórter Esso, "testemunha ocular da História". A História não é visível a olho nu. Nem mesmo se você colocar um telescópio em cima dos fatos você "verá" a História. A História se forma dentro da nossa cabeça. Exige esforço. Não basta fazer um link, uma passagem, colocar o microfone na boca, arregalar os olhos e gritar Brasil il il il. Portanto, não adianta querer saber o que se passa na cabeça das pessoas, pois o que se passa nelas é incomensurável. Podem existir versões - e nisso a mídia se especializa, entronizando apenas uma, que é: "puxa eu me senti muito emocionado, pensei na minha namorada, nos meus pais...". É um assunto intrincado demais para resolver no bate pronto. Por isso há tanto esforço em removê-lo. É preciso aplainar tudo, fazer com que as pessoas virem zumbis do pensamento, não tenham idéia nenhuma na cabeça, a não ser as frases prontas insufladas pela mídia. "Agora você vai se emocionar, você vai se apaixonar" ou: "Confira, pois conferindo você se sentirá participante desse momento histórico que estamos oferecendo para você, consumidor de todas as tragédias". Ao contrário do que dizem, ser apenas consumidor é abrir mão da cidadania. E ninguém "confere" de maneira conseqüente quando é colocado sempre num papel passivo. Nota do Editor: Nei Duclósé autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); de um romance: "Universo Baldio" (2004); e de um livro de conto e crônicas: "O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento" (2006). Jornalista desde 1970 e formado em História.
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