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Crônicas
11/08/2007 - 09h25
Aquele rádio inesquecível
Nei Duclós
 

Meu maior presente de aniversário, num longínquo outubro de 1958, foi um potente e pequeno rádio de cabeceira Phillips Mullard, que meu pai me deu num rompante. Liguei na tomada, deixei as válvulas esquentarem e me conectei com o mundo. Numa cidade construída no meio do pampa, paisagem lisa e aberta, todas as ondas desciam pela antena até chegar ao meu travesseiro. Foi quando despertei minha vocação para o jornalismo. E fiz minha vida ser orientada pela música.

Minhas estações favoritas eram: a Bandeirantes, onde pontificavam grandes radialistas, como Walter Silva com seu "Bóssessenta e cinco", que no início da tarde não só tocava música brasileira da melhor qualidade, como trazia grandes intérpretes e músicos para entrevistas; e a Tupi de São Paulo, onde Fausto Canova me ensinava jazz das 11 à meia-noite. Mas gostava também da Guaíba de Porto Alegre, que não tinha propaganda gravada e era uma escola de locução; a rádio Jornal do Brasil, com sua majestade de grande emissora; e a rádio São Miguel, de Uruguaiana, que tocava de manhã à noite só bossa-nova e a partir das 21 horas a maravilhosa música italiana, que sumiu para sempre, levando para o éter infinito melodias e cantores e cantoras sem igual. Adorava música francesa, de Edith Piaf a Jacques Brel, música mexicana de verdade (não essa gritaria de hoje, mal-assimilada pelos pseudo-sertanejos), boleros, tangos, samba-canção, música romântica americana. Havia melodia, ritmo, harmonia.

Havia a rádio Nacional de Montevidéu, que só tocava música clássica, a rádio General Madariega de Paso de Los Libres, na fronteira da Argentina, que tocava o folclore do país, especialmente os chamames, dramáticos e rascados; a rádio Belgrano de Buenos Aires, retrato da civilização do Prata, que estava no auge. Mas havia mais, muito mais.

Escutava as transmissões em português da rádio Pequim, da rádio Moscou e da Voz da América, que tinha vozes personalíssimas como Leonardo de Castro e Gaspar Coelho. Havia também a BBC de Londres, que eu gostava de escutar em inglês, mas tinha também transmissão em língua pátria. As ondas curtas eram super-potentes, o sinal ficava claro como o dia, e se, de repente, sumia, voltava daí a segundos.

Eram assim as transmissões esportivas. Na minha cidade, escutávamos a Cadeia Verde-amarela Norte-sul do País, com Fiori Gigliotti, da Bandeirantes, mas tínhamos também radialistas locais ótimos, como Mario Pinto (cronista da cidade), Mario Dino Papaléo, Degrazia (o grande narrador esportivo) e o excepcional João Carlos Belmonte, que ganhou prêmios de melhor repórter de campo em três copas do mundo trabalhando para a Guaíba. Esses radialistas da terra faziam parte da dinâmica Rádio Charrua, totalmente baseada na clássica Rádio Nacional, do Rio, inclusive com programa de auditório e produção própria de radionovelas. Posso garantir: o jogo de futebol era melhor escutado do que visto hoje, quando pernas de pau judiam da bola, como acontece nos falsos clássicos.

Naquela época, eu me recostava na cadeira preguiçosa para olhar o céu, contar satélites que passavam e ver estrelas cadentes, além do lento subir e descer da lua. Todos na minha casa tinham direito a uma cadeira preguiçosa. Apagávamos as luzes para ver melhor as estrelas (isso depois de um crepúsculo no rio Uruguai, encantador) e ligávamos a "eletrola Hi-fi" da sala, onde tocávamos nossos discos, de Luiz Gonzaga a Liberace, de Os Gaudérios a Trio Los Panchos ("Pasarán más de mil años, muchos más"). Hoje, quando o grande compositor José Gomes, arranjador e maestro, que ajudou a fazer de Os Gaudérios um dos maiores fenômenos musicais do Brasil, provocando uma revolução que infelizmente não teve continuidade, coloca música em dois poemas meus, fico pensando na magia no mundo.

Escrevendo para nosso Mestre, Moacir Japiassu, abordei um tema muito comum naquela calçada, a brincadeira do diabo rengo. Rengo, naquelas lonjuras, quer dizer coxo. A brincadeira se dava assim: uma fileira de crianças tentava passar para o outro lado (da rua, da calçada) mas tinha que driblar o diabo rengo, ou seja, aquele outro que, com uma perna levantada (para aumentar a dificuldade e portanto, a graça) tentava pelo menos tocar em algum dos passantes para livrar-se da maldição e transferir para o atingido o papel de diabo rengo. Quando conseguia, o antigo diabo então somava-se aos felizes cruzadores, que de um lado para outro divertiam-se em não ser o condenado pegador.

A complexidade de uma brincadeira tão simples é arrebatadora. Há uma condenação no meio do caminho na figura de um demônio. Mas este tem uma desvantagem: não consegue alcançar ninguém se não se esforçar muito, pois tem uma só perna funcionando. Ou seja, só se a pessoa que tenta chegar ao outro lado da vida prevaricar muito será alcançada por um pobre diabo. Se cair na armadilha, por distração, falta de velocidade ou de estratégia, assumirá toda a herança bandida. Será sua vez de tentar agarrar um inocente para conseguir sair do seu inferno.

O que espanta é a radicalidade do jogo. Não existe duplo papel simultâneo dos figurantes: ou você está livre, ou está condenado. Se estiver livre, precisa correr, driblar, aproveitar as brechas para poder passar. Se não for ladino o suficiente, ou corajoso, será agarrado pela terrível maldição. Então, ao se transformar no indigitado, livrará o outro da sua impostura, libertando-o para a inocência. Há queda, mas há perdão. Há rodízio democrático de papéis.

Um verso de um poema meu, "não há como enganar o diabo rengo" aborda essa maldição: há tempos, fomos condenados, não conseguimos passar para o outro lado, cumprir nosso destino. Só há um jeito de mudar a situação, e nós sabemos qual é. Sendo o mais eficiente cruzador, o mais bravo, o mais clarividente, o mais lutador. E o que é mais importante: contando com a solidariedade alheia, pois se não houver amigos para distrair o perigo, não há como enganar o diabo rengo. Depois que você cruza, você precisa voltar de onde partiu e enfrentar de novo o problema. A vida é feita dessas corridas de um lado a outro, junto com os companheiros, a família, vencendo a sombra que se atravessa.

Naquele tempo, a brincadeira tinha hora de acabar. Hoje, não temos a mesma sorte: não há recreio no acampamento de guerra. E o que é mais grave: não dispomos mais de todo o tempo do mundo. Perdemos o que é extremamente valioso e insubstituível: a eternidade nas nossas vidas.


Nota do Editor: Nei Duclós é autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); de um romance: "Universo Baldio" (2004); e de um livro de conto e crônicas: "O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento" (2006). Jornalista desde 1970 e formado em História.

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