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Crônicas
24/08/2007 - 17h03
Palavras pelo avesso
Nei Duclós
 

As palavras foram criadas para ordenar o mundo, mas esse poder está sendo esvaziado. A idéia é impedir que elas tomem conta do que interessa, como o livro-caixa. Se fossem obedecidas nos seus significados estritos, não haveria margem para tanta patifaria. A retidão de caráter das palavras não permitiria que ranhura, a ruga concreta das pistas, manhosamente substituísse irresponsabilidade, de natureza aérea e exposta ao clima. Ou que se invocasse a democracia toda vez que alguém é flagrado com a boca na botija, uma expressão arcaica, mas de sabor perene.

Um expediente conhecido é definir as ações humanas por meio do avesso dos significados de uso corrente. Tombar, por exemplo, no lugar de preservar, é bem conhecido. Levou bastante tempo para que as pessoas se acostumassem ao tombo como algo positivo, embora ninguém desconheça as conseqüências de um tombo de verdade.

A imposição de um sentido oposto ao que a palavra sugere, mesmo que faça justiça à erudição da linguagem, deixa um travo amargo difícil de superar. Virou uma fonte eterna de mal-entendidos e piadas de segunda mão, reforçadas pelas promessas de tombamento, quando casarões e matas podem tombar de verdade antes das assinaturas de decretos. Isso faz reverter, tragicamente, a manipulação da palavra. Ela acaba recuperando o que perdeu.

Quando alguém quer expressar respeito, jamais lhe ocorreria protestar contra seu interlocutor. Mas é o que a expressão "protestos da mais alta estima e consideração" faz. É uma solução que costuma invocar gerações. Atualmente deve estar em completo desuso, mas nunca me conformei que as gentilezas fossem expressas por protestos, um plural que lembra bandeiras vermelhas sendo pisoteadas por cavalos.

Existem ainda as frases famosas que usam palavras pelo avesso, para criar um tipo de charme irresistível. Como "o universo conspira a seu favor", atribuída a Paulo Coelho, ou "O homem está condenado à liberdade", de Jean-Paul Sartre. Há um abismo óbvio entre os dois autores e ninguém seria louco de compará-los. Mas em ambos o fatalismo se expressa da mesma forma, seqüestrando palavras do seu ambiente original. Conspirar é um verbo sinistro que lembra reuniões secretas ao redor de mapas sujos de sangue. E a metáfora da liberdade como uma condenação pode funcionar, mas não livra a frase de sua aparente contradição. Nas intenções, a diferença joga a favor de Sartre, que lançou a frase como confronto às tiranias.

Manipular as palavras é uma espécie de arrogância dos poderes, dos talentos ou dos intelectos. Os privilegiados fazem de conta que não se importam com os lugares comuns do sentido e se esbaldam usando o vocabulário como usam a terra, a razão ou o dinheiro. Fazem isso para se distanciar de quem se apega tanto às palavras. Pessoas despossuídas, condenadas aos significados originais (ou pelo menos cristalizados pelo uso), deixam de lado tudo o que cheira a esperteza de doutores.

O povo prefere render-se ao que é sugerido de verdade. Talvez venha daí o sucesso de uma dramaturgia cada vez mais rasa. Fazem sucesso os personagens desbocados, que por fora sapateiam em cima da linguagem, mas no fundo, por força do deboche, lutam para repor os sentidos no seu devido lugar.


Nota do Editor: Nei Duclós é autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); de um romance: "Universo Baldio" (2004); e de um livro de conto e crônicas: "O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento" (2006). Jornalista desde 1970 e formado em História.

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