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Crônicas
08/09/2007 - 08h01
Show me the Money
André Falavigna
 

Esse é o Holden, senhores. A frase aí atrás não é minha. Aliás, nem o título lá em cima é meu. Mas ambas as coisas vão me servir muito bem, aposto. Vocês já vão entender. Os iniciados, é verdade, já entenderam. O caso é que, recentemente, me rendi ao Holden. Trata-se do melhor passatempo do mundo. Tenho até meu grupo fixo; formado, organizado e moralmente mantido por mim mesmo. Sim, uma coisa dessas é possível.

Ora, alguns dirão, que catzo é o Holden? O Holden é uma forma de arte, uma pungente representação simbólica da vida interior do ser, uma meditação transcendental acerca do livre arbítrio, uma investigação sobre a alma, sobre Deus e sobre o destino, uma modalidade de pôquer e uma desculpa para reunir cafajestes da pior espécie, embebedar-se, comer porcarias e destruir a própria casa, tudo isso impunemente.

Começou na festa de despedida de meu padrinho de casamento. Ele partia para tentar a vida na América. Fomos à casa de campo de um amigo comum. No final, organizamos aquele pôquer básico, inocente. Nunca havia praticado o Holden. Até então, só jogara pôquer fechado. Fiquei entusiasmado. Organizei outra sessão após a ceia de Natal, na minha casa, ano passado. Foi aí que tudo começou de verdade.

Essa primeira mesa era composta por mim, por meus dois irmãos, pela mulher de um deles, pelo tal dono da casa de campo (um ex-lotérico) e sua esposa, pelo legendário Nathan (isso vai ficar mais nítido adiante) e, por último mas não somente, por três membros do Literário. Isso mesmo. Hoje, nenhum dos três colabora mais conosco (nem com o pôquer, nem com o Literário). Mas, na época, a contar comigo, éramos quatro. Portanto, tratou-se de jogatina, mas de jogatina sensível. Vocês sabem como esse pessoal do Literário é sensível a não mais poder. O Mazagão, por exemplo, é inclusive são-paulino.

Depois, outros vieram. O Reis, por exemplo. O Reis merece alguma atenção especial. É meu advogado (um deles, preciso de muitos). Quando está de folga, veste-se mais ou menos como um caubói. E você não iria querer fazer piada com isso, garanto. O camarada parece um iaque, só que é bem maior. É dele a honra de iniciar os trabalhos conclamando os outros a perderem dinheiro (para ele, é claro), no já clássico trovejo: "Show me the Money, senhores". E é dele também a mania de dizer, quando alguém se lamenta da sorte: "Esse é o Holden, senhores". Ele diz isso e vai arrastando as fichas para si, tilintantes.

E não é só. Há uma lista de frases que, sexta-feira após sexta-feira, Reis foi incorporando à mitologia da mesa. "Senhores, o Holden é como o tarô: conforme as cartas vão se abrindo, as coisas vão ficando mais claras". Ou então: "Vou estralhaçar tudo". Assim mesmo: estralhaçar. Mas estou me antecipando. Tudo se desenvolve de maneira bastante particular. Vou tentar transmitir o quadro da maneira mais precisa que puder. Vejamos se consigo.

Suponhamos que seja a vez da minha casa (já temos três se revezando nessas recepções), aquele sobrado do Cambuci Profundo. Como é minha casa, o pessoal aparece cerca de duas horas antes do combinado. Há quem leve uísque, há quem se drogue escondido, há quem leve a mulher, há quem já chegue meio bêbado. Pedem-se pizzas, encomendam-se sanduíches, quebram-se dois ou três copos. Toalha na mesa, cacifes distribuídos, a coisa começa. Damos sempre um jeito de nos iludir: instituímos pingos baixos, de dez e vinte centavos, na esperança de gastar menos. Não funciona. Lá pela quarta rodada, tem sempre algum boçal para dizer: "é dez pra jogar". Sete ou oito boçais sempre aceitam a parada e, quando você menos espera, restam lá cinco ou seis boçais mentirosos e um ou dois boçais sinceros. Mas aí, foi-se. A gastança começou e nada poderá detê-la. Isso não é importante. O importante são os atores da cena. Aos jogadores, portanto:

O casal de ex-lotéricos. Ele, o Fernandão, é um bonachão boa praça que, a todo o momento, diz coisas como "Que o diabo vos carregue!". Ela, a Paula, uma austera chinesa (velha conhecida minha, da época em que servi no Camboja) que a todo o momento repreende o marido, os filhos (que, às vezes, aparecem), os donos da casa, o baralho, a comida, o diabo. E o pior é que dá certo. Há o Nathan. De longe, é meu preferido. Lembra muito o Johnny Bravo, mas é mais baixo e, mesmo contra a própria vontade, não é loiro. Figura carimbada na Vila Madalena e no O’malleys, soberbo jogador de sinuca, intrépido aviador e conhecido violeiro poliglota (é mesmo tudo muito estranho), pode ser reconhecido por suas expressões inusitadas, por sua grandiloqüência grandiloqüente e por sua imodesta modéstia. Quando arrasta a rodada, diz coisas assim: "Penetro-lhes com meu imenso e impiedoso caralho medieval e crudelíssimo!", ou "Afoguem-se em meu sêmen espesso e peróleo!", ou ainda "Prostrem-se diante da magnificência de minha benga indomável, sadia e vertiginosa, e purifiquem-se diante da glória de minhas bolas invulgares!". Isso ainda que o principal derrotado tenha sido a Paula, a chinesa brava já citada no início do parágrafo e que, no final das contas, é das poucas mulheres que suportam a mesa.

Há meu irmão do meio. Ele sempre perde o controle. Faz o papel de inspetor. Não deixa ninguém blefar, pelo menos enquanto não está quebrado. Depois que está quebrado, saca meia dúzia de imagens de orixás, coloca-os em cima das fichas e vai tocando a coisa na base da blasfêmia. Se não der certo, cospe numa ficha e gruda-a na testa. Daí, quando é a vez dele de pingar, o Inspetor simplesmente atira a cabeça para frente, deixando a ficha babada cair no meio da mesa, misturando-a às limpas. Há também a mulher do meu irmão mais velho. Como ela é mulata, toda vez que sai uma dama na mesa alguém diz que meu irmão já tem um par de damas, porque ele vem com uma dama preta só dele. Isso para vocês verem como o pessoal é decente e educado. A sorte do Fernandão é que não há nenhum naipe amarelo.

Essa minha cunhada sempre começa bem, mas depois se embebeda, fica inchada, perde a compostura. Quando já não se pode mais distingui-la de um dos membros da família Peposo, a pobre perde todas as fichas só para irritar o marido. Este, por sua vez, é um homem de altos e baixos. Ou ganha de porrada ou faz questão de dar provas insistentes de desapego material. E mente tanto (no jogo, senhores, no jogo) que a gente fica desorientado. Às vezes, funciona. Às vezes, dá errado. O importante é a emoção, compreendem? Porque, como diria o Reis, "O River é uma coisa maravilhosa". "River" é a última carta que se abre na mesa, para quem não sabe. E é (como direi?) uma coisa maravilhosa.

Há o David, meu amigo português criado em Recife. As grandes questões existenciais ficam por conta dele. É outro que não quer saber de ganhar, mesmo porque é o único que não precisa. O importante, para David, é dirimir os mistérios da vida, da origem e do destino de todas as coisas. Assim, quando você está no auge da tensão, fazendo contas, medindo expressões nos rostos rivais ou interpretando os mais sórdidos papéis, ele o interrompe para chamar-lhe a atenção para a metafísica kantiana, ou mesmo para acusá-lo de alguma falha moral ancestral e definitiva. Entrementes, há a possibilidade de ele tentar lhe convencer de que Deus não existe e de que, depois da morte, vamos todos conhecer o Grande Nada. Qualquer dia desses, ainda descem-lhe o braço. Se o matarem, consolo-me pelo menos em parte: nessas idas e vindas já lhe devo cem reais. De qualquer modo, fará falta. Toda grande mesa precisa de seu celerado.

Aquele meu padrinho de casamento está de volta ao Brasil, a fim de manter o visto americano. Tem ido ao pôquer, também. É o Álvaro, vocês o conhecem de outras crônicas. O pessoal o recebeu bem. Outro dia, depois de levar bonita mão do Inspetor, teve a oportunidade de ouvir que não passava de um "Velho Sifilítico", com o que todos concordaram entusiasticamente (sobretudo a Paula).

E há eu mesmo, que acendo o charuto somente quando começo a subir sobre a carne seca. Se perco, torno-me mais boca suja do que de costume. Se ganho, torno-me mais boca suja ainda. Quando tudo termina, estou sempre bêbado, tentando administrar duas dúzias de cinzeiros repletos, outras tantas de garrafas vazias, a polícia (que os vizinhos sempre chamam) e o sol, que sempre apronta das suas. Não é pouca coisa.

E, depois, ainda há a Jovem Esposa que, não consigo entender por que, fica mais ou menos brava com essa atividade toda.

Mas é isso aí. Daqui a pouco, a sexta-feira está aí. Vocês têm que me dar licença. Vou parar por aqui. Afinal de contas, preciso me concentrar. Esse é Holden, senhores.


Nota do Editor: André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.

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