Veio de um arrepio o sinal das horas. O homem chegou à janela, viu que até as ervas do jardim destoavam do sossego e sentiu nas costas o perturbador roçar da noite. Abriu-se-lhe, então, o apetite: queria carne. Lá fora, o orvalho despertava para as urgências o que se acreditava adormecido e nada mais havia em suspensão, exceto expectativas cada vez mais aliciantes - uma espécie de chamado sem verbo, mas imperativo. O homem foi ao espelho e consultou na própria aparência a véspera da metamorfose. Sobrancelhas eriçavam-se em torno de olhos miúdos, mas atentos, e o bigode lustroso ganhava uma espécie rara de eletricidade. O olfato - poderoso radar - atingiu, então, a excelência. Como um animal de quatro patas, ele sabia agora onde encontrar o que o satisfaria, voltou a cabeça na direção do mundo e antegozou o desfrute dos vícios. A lua gorda anunciou a hora plena e, antes de sair, o homem pingou uma gota de lavanda na gola da camisa. Tinha faro, tinha fome e quase cascos. Um uivo percutiu-lhe a laringe. Já não era mais deste mundo. Nota do Editor: Daniel Santos é jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
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