Foi numa tarde de segunda-feira que nossa vizinha Anete entrou esbaforida por nossa casa, gritando: - O Zé tá no hospital! O Zé tá no hospital! Minha mãe, assustada, começou a chorar. Marcos André, meu irmão mais velho, correu para a esquina e foi atender o orelhão. Finalmente, depois de dois dias, havia chegado notícias de meu pai. Alguns meses já se passaram, desde aquele sábado chuvoso. O dia em que meu pai saiu de casa para tomar sua religiosa cerveja e não regressou. Descobrimos, dias depois, que ele estava internado em um hospital. Sem documento. Sem família. Sem dinheiro. Sem satisfação a nos dar. Sem vergonha na cara. Os doutores demoraram quase 4 horas para retirar a lâmina encravada na costela do velho. Pensei logo em briga de bar. Meu pai era craque nisso. Mas parecia que, aquele era o dia do caçador. José Antônio Pereira da Silva era filho do popular Juca, o coveiro, no bairro de Santa Saudade, onde nasceu e foi criado. Ganhou a alcunha de Zé Covinha, por ajudar o pai a mandar pra vala presuntos e uns moribundos, infestados vez ou outra por alguma coisa que "passava pros outros". Ele era mais um dentre tantos "Zés" que existem por esse país. Analfabeto de carteirinha, Zé pouco freqüentou os bancos escolares. Quando precisava assinar algo, dava um largo sorriso de poucos dentes e metia o polegar direito no papel. Meu pai sempre teve carinho especial por mim. Caçula de uma safra de 4, era o mais paparicado pelas tias e avós. Homem, segundo o velho, não pode ser paparicado. Corria o risco de não ser sujeito "esperto". Crescer com a munheca torta. E munheca, segundo ele, era pra esmurrar a quem nos dissesse algum desaforo. Meu avô sempre nos contava histórias sobre meu pai. Dizia que ele era brigão e adorava passar a perna nos amigos. Nunca soube ao certo como meu pai trazia nosso sustento pra dentro de casa. A professora perguntava na escola para todos, e eu cismava em responder que não sabia pronunciar o nome de sua profissão. Minha mãe sempre despistava, e meus irmãos pareciam mais cúmplices do que outra coisa. Às vezes, via meu pai conversando com gente estranha, que tinha arma na mão e cigarro na outra. Aquilo me deixava assustado. A família estava reunida na sala, assistindo ao noticiário na TV. Meu pai acariciava um copo e sua branquinha, enfaixado feito múmia, do peito até a barriga, deitado no sofá. O velho nos dava conselhos. Dizia que tínhamos que estudar para ter as oportunidades que o destino lhe teimava em dar. Sempre quando tinha alguma notícia sobre política na tv, meu pai ia as lágrimas, de tanto rir. Dessa vez, ele se continha pelo ferimento, mas ainda assim deu um esmiuçado sorriso. Nunca entendi desses negócios, mas sempre via todo mundo reclamando quando o assunto era essa tal de CPI, de prisão e uso de dinheiro do povo. Por quê meu pai dava risadas? Se ninguém gosta, por que ele ri? Será ele amigo daqueles caras de paletó e gravata? Não, não fazia sentido. Só vi meu pai bem arrumado uma única vez, no enterro do vovô. Aliás, foi a única vez também em que vi meu pai chorar. Nem quando o time dele perdeu a final do campeonato, ou meu tio foi preso o coroa sequer deixou cair uma lágrima. Então de que tanto meu pai ria? Fui dormir com essa pergunta na cabeça. Três dias depois, e a dúvida ainda pairava sobre minhas idéias. Na volta do colégio, vejo perto de casa um homem, todo de preto, gritando com meu pai. O homem se foi, mas dava a impressão de que ia voltar a qualquer momento. Zé se apressou em me confortar, e que aquilo que acabara de ver não era nada demais. Entrei em casa despreocupado. Era por volta de 11 da noite. Estávamos todos dormindo. Ouvi pessoas conversando lá fora. Olhei pela janela. E o homem de preto estava de volta. Dessa vez, apontando uma arma para meu pai. Saí correndo para a porta da rua: - Pá! Pá! Pá! Era tarde demais. Cheguei e vi meu pai agonizando, no chão da rua. O homem que fez os disparos entrou em um carro e foi embora. Logo, os vizinhos chegaram perto para ver o que estava acontecendo. Minha mãe e meus irmãos já se acabavam em prantos. E eu, sentei perto do velho Zé, e pude ouvir mansamente seu último pedido: - Me prometa que nunca será igual a mim. Tão pronto ele terminou de sussurrar, rolou uma lágrima em seu rosto. Foi a segunda e última vez que vi meu pai chorar. O passaporte de meu pai para o outro lado estava carimbado. Ironicamente, o homem que cansou de enterrar corpos, seria agora o enterrado. No dia seguinte, na volta do enterro, o que restou da família se reuniu na sala para relaxar diante da TV. Afinal, tinha sido um dia difícil. Mamãe preferiu se deitar; não se sentia bem. Eu e meus irmãos víamos o noticiário, quando de repente: - Foi assassinado na madrugada de ontem José Antônio Pereira da Silva, conhecido como Zé Covinha. Ele estava na porta de sua casa quando levou 3 tiros no peito. A Polícia acredita que o crime foi cometido por um de seus comparsas. Zé Covinha era um dos bandidos mais procurados da cidade. Ele era acusado de seqüestro, 3 homicídios, roubo a bancos e tráfico de drogas. Agora sim eu conhecia meu pai. E poderia responder, sem truques, a pergunta da professora. Me veio um filme na cabeça da noite anterior. Me lembrei dos últimos instantes do velho. E entendi porque o coroa pouco se emocionava. Ali aquelas lágrimas fizeram sentido. Era o último choro do malandro. Nota do Editor: Renan Oliveira é jornalista.
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