Cacá mente ao dizer que não sonha com coisa outra que não seja aquele anúncio de vitrine. Vira num desses passeios fúteis ao shopping, incursões tipicamente vãs. Dia em que a soma de tristezas se convertia numa espécie de espinheiro espiritual. Como se elegera predestinada a não capitular diante da melancolia, abusava dos escapes triviais: fazer compras, cortar o cabelo e, tendo chance, paquerar. Tudo, no fundo, a que esquecesse de vez Zeca. Como não lhe saíam da cabeça os detalhes de seu rosto, os gestos mínimos, o tom da voz, deletava o ciclo de memórias e se refugiava na promoção anunciada. Pensara, inicialmente, numa versão discreta. Estudou a opção apimentada, a ver se lhe caía bem. Acabou derivando: nem uma coisa, nem outra. Ficaria com o modelito intermediário. Queria evitar grandiloqüências, a vissem de qualquer ângulo. Noutra ponta, descartaria contornos que a fizessem parecer uma noviça. Importaria, enfim, era o esquecimento sobre Zeca. Já decidida, iria entrar na loja para confirmar o pedido, quando bateu-lhe a dúvida. Estava sinceramente pronta a aderir? Próteses, naquele tempo, se haviam transfigurado em artigos tão comuns quanto sorvetes de chocolate. Natural encontrar entre as colegas, a família, quem houvesse apostado nesse tipo de complemento. Buscava era se convencer de que a escolha não se fundava no esforço único de desconstruir Zeca em sua vida. A vendedora armava o sorriso e se aproximava para o "em que posso lhe ajudar?", no momento em que a incerteza acabava de inundar-lhe as bordas da epiderme. Agradeceu, se retirou. Saiu se perguntando se admitia a hipótese por mero modismo, impulso, tesão consumista, desconforto de qualquer natureza. Ou se para esquecer Zeca e todo seu arsenal de encantamento. Resolveu então consultar as duas melhores amigas. Precisasse de um voto consagrador, iria ainda a Tia Betânia, simpática especialista em frivolidades. Rivane, advogada quarentona, cravou no faça. Pusera ela mesma e recalibrara a autoconfiança. Postura mais insinuante. Sílvia, decoradora, renegou. Aderira aos 50 e retirara aos 51. Vislumbrara um desequilíbrio sutil, mas determinante. Restara a irmã da mãe, confidente desde os tempos em que os seios despontavam ao corpo de Cacá, duas décadas e meia atrás. Recebeu o dilema da sobrinha com surpresa. E terminou recorrendo a uma máxima da era hippie para dizer que sim, que experimentasse. A prerrogativa era tosca, embora instigante: como responder negativamente a algo sem sequer provar-lhe o gosto? E, talvez, ajudasse a afastar Zeca como neblina fria e dolorosa. Ela julgou-se, então, pronta para investir no implante. Chegou perfumada à clínica. Odor amadeirado. Transpirava bom-humor e segurança. O vestido emprestando ao colo um decote delicado. Tons em vermelho e negro ditando os limites. Tomou duas xícaras de chá. Hortelã, seu preferido. Assinou o termo de compromisso sem lê-lo por inteiro. Notou as observações sobre efeitos colaterais e as condições de troca. Já se via esquecendo Zeca. Era fim de tarde, quando o clínico concluía a operação. Tinha agora a alma siliconada. Literalmente. Um estado de espírito em puro silicone. Procedimento indolor, nada invasivo. Cacá ao começo tropeçando nas novas sensações. Deixou o lugar sorrindo, ares diferentes se avizinhando. Um contentamento leve. Pensou, não sabia exatamente por quê, em chope claro. Cruzou ao bar da esquina. Fez o pedido e, num repente, sentiu o coração partindo-se feito fosse um cristal multifacetado. Zeca duas mesas à frente. Acompanhado. Ela percebeu o plasma escorrer pelos poros, pelas extremidades do corpo, gélido. Foi se esquecendo de tudo. Desmemoriando-se até de Zeca. As lembranças se derretendo por inteiro. O laudo, sintético, assinalou: choque térmico da alma. Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia, onde publica às quartas-feiras.
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