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Crônicas
29/09/2007 - 09h48
Minha vida na pensão
André Falavigna
 

Durante muitos anos, morei numa pensão da Vila Clementino. Ainda existe, na Rua Gandavo (ou Gândavo, conforme o gosto do freguês). Lugar bom, limpo, onde se pode gozar de grande privacidade e segurança. Para jovens solteiros de poucos recursos, não há alternativa melhor. Podem-se levar mulheres para passar a noite. Tem televisão a cabo até o canal 61. Os quartos são todos individuais. Alguns têm banheiros próprios, outros não. Como há, ainda, dois banheiros coletivos, nunca há filas para se banhar ou se aliviar. Há cozinha coletiva, toda equipada. Todas as áreas comuns são regularmente limpas. Eu levei uma mini-geladeira, e a instalei em meus aposentos. Como vocês podem ver, era uma beleza.

A pensão do Seu Altamir. Taxista excêntrico, filósofo diletante, carpinteiro de primeira linha e surpreendentemente são-paulino, no bom sentido (sim, isso também já existiu, um dia), Seu Altamir era e ainda é o próprio símbolo daquela confiabilidade paulistana que, junto com os bairros, corre a passos largos para se transformar em alguma outra coisa que ainda não estou pronto para compreender o que seja, mas que, definitivamente, é mesmo outra coisa.

Vivi muito bem ali. Muitas coisas interessantíssimas me ocorreram. Não, não comi dúzias de mulheres. Quando fui morar lá, a Jovem Esposa já existia, só que sob a forma de Pequenina Namorada Safada a Não Mais Poder. Vamos facilitar as coisas. Para abreviar, de agora em diante me referirei à crisálida de Jovem Esposa como Pequenina Namorada. Todos ganharemos tempo com a providência. O caso é que ela, desde aquele tempo, monopolizava meus fluidos mais disputados. Assim, essas aventuras foram, como direi? De outra natureza.

A começar pela convivência com Seu Altamir. Fisicamente, o homem lembra bastante Emerson Leão. É bem mais suave, é verdade, mas tem lá seu tom de sargento. Lê bastante, as coisas mais aleatórias, e, entretanto, é um homem de ação. Daí que dele surjam tantos modos precisos, tanta técnica para tudo, tanto êxito prático sem que, para isso, concorra o menor fundamento teórico cientificamente válido. Isso porque Seu Altamir não precisa da Ciência, a despeito de tê-la na mais alta conta. Ele simplesmente sabe como colocar de pé a mais complicada escada de madeira, e a coloca. Ele crê que a construiu conforme certos preceitos insofismáveis que, se postos sob a análise criteriosa da física, na verdade ruiriam em cinco minutos. E que importa? A escada estará lá, perfeita, até cinco minutos depois do Juízo Final. Foi assim que fiquei sabendo que o Efeito Estufa só pode ser a mais rematada patacoada mistificatória. Que, para se preservar os cabelos bastos, basta massagear o topo da cabeça sob diárias chuveiradas mornas, após o imprescindível sono que se dá entre 06:00 e as 10:00 da manhã, contíguo àquele que se deu entre as 2:00 e as 5:59, que é outro sono, também bom, mas, às vezes, prescindível. Não há necessidade de se massagear a nuca e as laterais, porque isso já o fazemos involuntariamente, contra o travesseiro, enquanto curtimos aqueles dois sonos distintos e complementares.

Tais princípios se desdobravam por sobre os outros ofícios do polivalente senhorio: se você fizesse uma corrida com ele, descobriria afinal para que servem as hipotenusas. Seu Altamir conduz-se na praça sempre de acordo com a mais estrita geometria altamiriana.

Quando Senegal bateu a França, durante a Copa de 2002, e eu saí de meu quarto meio que para ir ao banheiro, meio que para encontrar alguém com quem manifestar minha espantada alegria (a Pequenina Namorada dormira o jogo todo), cruzei com um improvável Seu Altamir descabelado, que interrompera o segundo sono para assistir a abertura da Copa. Foi a única vez que o vi mais ou menos descomposto, o que se justifica pelo inesperado da coisa. Suponho que ele também desejasse encontrar alguém com quem partilhar o gostoso desastre francês. Deu-se, assim, o seguinte diálogo, muito ligeiro:

- Porra, Seu Altamir, o senhor viu?

E ele, escandindo tudo bem escandidinho (como sói acontecer, aliás):

- Vi, sim. Os pretos venceram.

Nathan, O Estrepitoso, morou algum tempo por lá também. Vocês se lembram dele, estou certo. É o que, quando vence uma mão de pôquer, esbraveja coisas como "Submetam seus intestinos vulgares às lacerações lancinantes que somente meu membro medieval, intrépido e venturoso pode provocar a traseiros imundos como os vossos", ou ainda "Sorvam meus sagrados líquidos escrotais e sintam-lhe os odores acres e severos".

Pois é. Ele mesmo. Morávamos no térreo, a poucos quartos de distância. Eu no 08, ele no 11. Muitas vezes, enquanto eu repousava no escuro, ao lado da Pequenina Namorada, Nathan já se preparava para mais outra aventura (as aventuras eram sempre em série, de verdade, e não como nos filmes, em que a série é sempre ilusória). Então, saía do 11 lá pelas 19:00, banho tomado, e, a fim de saber se estávamos dispostos a acompanhá-lo, passava pelo 08, dava algumas batidinhas na janela com a chave de seu escangalhado Uno e abordava-nos assim, no tom grave e pastoso dos grandes bêbados de antigamente:

- E aí? Cês tão metendo?

Se não estivéssemos, muitas vezes saíamos com ele. Mas isso já é história diferente, podem apostar. Fica para a ocasião certa.

O Celso Koyama, uma espécie de múltiplo compadre que tenho, substituiu Nathan assim que este nos deixou. O nível não caiu. Certa feita, ele desmaiou bem devagarzinho na porta do próprio quarto. Isso, isso mesmo. Tamanho fora o entusiasmo etílico que o pobre, não conseguindo encaixar a chave à porta, foi desmaiando em câmera lenta, aos poucos, até repousar naquela posição de yoga (acho que é Flor de Lótus, ou coisa assim) na qual foi encontrado e da qual foi retirado pelo Seu Altamir e pelo Jacó, outro pensionista digno de nota e que, por falta de espaço, ficará para depois.

Naquela época, podíamos ir da mansão (foi como passamos a chamar os quartos) dos Koyama a dos Falavigna em poucos segundos. Mais ou menos como vai ser agora que o Celso foi adotado pelo Cambuci e, creio eu, pela Caixa Econômica Federal. O Japonês conseguiu comprar um apartamento mais ou menos do tamanho dos quartos da pensão do Seu Altamir, bem do lado da minha casa. A grande vantagem é que, dessa vez, o banheiro vai ser privativo.

Bom, pelo menos é dele. Meu sobradão (aquele, que quase caiu) nem meu é: serei inquilino por muitos anos ainda, acho.

E o tempo da pensão se foi, afinal. Casei-me, voltei ao Cambuci. Foi como ter voltado de uma viagem a um país tremendamente remoto e muito agradável. E agora é a hora de cumprir uma promessa.

Numa tarde, após um daqueles êxitos amorosos que nos abobam durante vários minutos, voltei do banheiro e abri a porta do velho e bom 08. A luz do sol se pondo atravessou os muros às minhas costas, cruzou o quarto todo, quente, e foi avermelhar a Pequenina Namorada, cheirosa, sentada na cama desfeita e olhando o nada. Os cabelos dela me devolveram boa parte do sol, na cara, lembrando-me de que Deus existe. Jurei baixinho, só para mim, que nunca esqueceria aquele quadro, que ele seria meu amuleto, minha relíquia.

E, às vezes, do meio do turbilhão da vida, ele retorna a mim calado, tão lindo quanto sempre, tão claro como antes, tão simples quanto isso.

Foi boa, minha vida na pensão.


Nota do Editor:  André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.

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