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Crônicas
30/09/2007 - 13h54
Papéis
Marcos Alves
 

Milhões de papéis, a voar de um lado para o outro, como uma chuva de reveillon... Ferdinando se vira e cobre a cabeça com o travesseiro. Não adianta, não consegue voltar a dormir.

Levanta-se e vai até a cozinha. Sônia passa o café, olha para o marido e pergunta se dormiu bem.

- Não, ainda agora tive um pesadelo horrível.

- Aquele, de novo?

- É...

- Você realmente não toma jeito!

Nervosa, ela sai da cozinha. Não demora um segundo e volta.

- Ferdinando, você é doente! Isso que você tem é doença, meu filho.

Um apego inexplicável, que o levava a manter em casa um cômodo só para os "eleitos" - papéis de todo tipo: contas, anúncios, correspondências, cartões de visita, notas fiscais... por ele considerados indispensáveis e que em vez de descartados eram arrumados aos maços e encaixotados. E para desespero de Sônia, depois desempilhados e novamente empilhados por Ferdinando.

Assim vivia o casal. Ela, sempre com a última palavra, mas dependente do marido, emocional e financeiramente. Ele, incapaz de discordar diante de qualquer afirmativa, mas absolutamente apaixonado por ela desde que a conhecera.

Ela tem o domínio da relação. Em 17 anos de casamento, a mesma casa, mantida pela aposentadoria precoce dele por incapacidade para o trabalho - fatos que vêm à tona sempre que discutem, geralmente nos momentos de crise financeira.

Toda a mesmice foi quebrada no dia em que Ferdinando abriu a porta de casa e anunciou, aos berros:

- Estamos ricos!

- Sei...

- Sônia veja com seus próprios olhos. É o bilhete da mega-sena, eu acertei as seis dezenas, eu ganhei, nós ganhamos, Sônia! Nós ganhamos!

- Não acredito! É verdade mesmo, Ferdinando? Olha que eu não tenho mais idade para isso...

Estavam milionários. O prêmio era o maior dos últimos cinco anos. Os dois passaram a noite em claro fazendo planos. Sônia iria ajudar a família, dela e do marido, comprar uma casa com um quintal muito grande. Teria empregados, poderia comandar os serviços domésticos como uma rainha, como sempre sonhou.

Ferdinando estava satisfeito com a sorte. Deixaria a administração do dinheiro para a esposa, como sempre foi. Apenas construiria uma instalação adequada para sua coleção.

Um galpão arejado e amplo. Teria todo o tempo do mundo para cuidar deles. E a coleção iria crescer, é, claro, ganhar outros tipos, cores e tamanhos.

Foi só o tempo de Sônia ir até à padaria e voltar. Entrou na sala aos berros, fuçando a bolsa, olhando as gavetas, remexendo os papéis em cima da mesa.

- Ferdinando, o bilhete...

- O que é que tem? Eu lhe dei, você ficou com ele.

- Fiquei, mas ele não está mais comigo, sumiu!

- Como assim, Sônia? Você está de gozação...

A mulher chorou até o dia seguinte, um choro de deixar os olhos inchados por toda a semana. Depois de muito fazer o trajeto entre a padaria e a casa à procura do bilhete, Ferdinando decidiu dar um fim na coleção.

Ficou abalado, mas perdoou a mulher por ter perdido o único pedaço de papel que realmente tinha valor naquela casa. Valia tanto que talvez pudesse mudar completamente a vida dos dois. Até mais do que ele gostaria.

Ferdinando a amava e sabia que dificilmente encontraria alguém nesse mundo capaz de suportar suas esquisitices, como Sônia. Por muitos anos, viveu com medo de perdê-la. Agora, tinha esse trunfo nas mãos.


Nota do Editor: Marcos Alves é jornalista.

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