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COLUNISTA
Sidney Borges
12/08/2004 - 12h04
A senzala, o dragão e os difamadores
 
 
(com a ajuda de Carl Sagan)

No ano santo de 1743, na Vila dos Moutinhos, lugarejo próximo ao local hoje conhecido como Ipanema, vivia o coronel Meirelles, que tinha a incumbência de zelar pelas moedas cunhadas na fundição da Casa da Moeda Real.

Os dobrões, de ouro brasileiro, eram enviados para Portugal, milhares deles. Junto iam barras do mais puro ouro. O coronel Meirelles era um homem de posses, na casa dos cinqüenta anos, casado com uma senhora da corte portuguesa, fiel e prendada, embora de bigodes.

Suas vastas terras abrigavam uma das mais cobiçadas senzalas da colônia, habitada por negras de lábios grossos e ancas generosas, escolhidas pessoalmente e compradas a peso de ouro no mercado de escravos de Angra dos Reis. Senzala não é o nome apropriado para a moradia das preferidas. Harém seria mais correto, guarnecido inclusive por eunucos da Índia.

Não foram poucos os que notaram que o coronel Meirelles vivia além das posses, sua renda anual, embora generosa, era insuficiente para tantos luxos e mimos. Durante algum tempo ele evitou a ostentação, viveu discretamente, mas a chegada de uma negrinha de olhos verdes e carnes rijas como mármore, trouxe problemas. A até então pacata existência do nobre guardião do ouro real passou a ser alvo dos folhetins, tendo ele virado o preferido das fofocas.

A menina, ambiciosa, queria vestidos, jóias, escravos próprios e uma carruagem só para ela. O coronel satisfez um a um os desejos, até torná-la única. Vendeu as outras escravas e transformou a casa do harém numa mansão estilo normando.

Todos esses acontecimentos, um turbilhão de novidades, acabaram por causar grande desfalque nas finanças do coronel. A partir da chegada da jovem as remessas de ouro também sofreram desfalques, o que motivou o envio de um auditor ao Rio de Janeiro.

Não foi preciso muito trabalho investigativo. Dos prostíbulos da Lapa, de onde raramente saia, o auditor enviou olheiros que contaram dezoito sacos de moedas saindo da fundição. O coronel entregou dezesseis sacos para embarque. No trajeto desapareceram duas arrobas de moedas.

A ordem de prisão foi expedida da cama da francesa caolha. O auditor, que era também jesuíta, estava investido de plenos poderes. A prisão foi um grande escândalo, o maior do ano de 1743, não havia outro assunto nos salões da cidade. Os folhetins nunca dantes venderam tanto.

Da cadeia, desesperado, o coronel enviou uma carta ao amigo engenheiro José Fernandes Pinto Alpoim, muito influente na corte portuguesa. Confiou a ele a guarda da amada e pediu ajuda no julgamento próximo. Junto acrescentou o número da conta de um banco argentino, onde havia fundos suficientes para amenizar a ira do jesuíta e aplacar o furor consumista da amada, cuja falta lhe estava partindo o coração.

No dia 19 de setembro de 1744, oito meses e quatro dias após o encarceramento aconteceu o julgamento, presidido por Tonico Siqueira Cornélio, o jesuíta. O engenheiro que desde a chegada da negrinha vivia nas nuvens, prontificou-se a ajudar o amigo com uma condição.

A vida em troca da menina e das outras contas que ele sabia existir. Sem alternativa o coronel teve de concordar. No dia do julgamento toda a cidade dirigiu-se ao tribunal. Na corte o jesuíta devidamente paramentado, depois das formalidades de praxe, perguntou sobre o ouro:

- O coronel Meirelles tem alguma explicação para o desaparecimento de duas arrobas de ouro na remessa verificada por mim e de outra setenta e oito arrobas nos últimos seis meses antes da minha chegada?

- Tenho excelência.

- Então diga, todos estão curiosos para saber!

- Temo passar por louco, excelência, o que aconteceu é difícil de acreditar.

- Diga logo homem, não temos tempo a perder!

- Foi um dragão excelência. Daqueles que soltam fogo pelas ventas. Ele vive na minha casa. O ouro foi para lá levado e eu pude ver quando o dragão pegou dois sacos. Tentei me aproximar mas não consegui, ele lançou uma língua de fogo que por pouco não me chamuscou as partes.

- Fale mais sobre essa criatura. Como é esse dragão e o que ele faz com o ouro?

- Como, o senhor, um homem tão poderoso, então não sabe? Os dragões comem ouro, este comeu todo o ouro desaparecido. Agora ele está esperando uma nova remessa, se não houver ele poderá incendiar a casa e depois, talvez, todo o Rio de Janeiro.

- E esse dragão não pode ser apanhado? Podemos lançar redes e depois de matá-lo recuperar o ouro que só pode estar na barriga.

- Impossível, o dragão é invisível.

- Ora se pusermos farinha no chão saberemos por onde ele anda.

- Também não dará certo, ele não anda com os pés no chão, flutua logo acima.

- Então, nesse caso eu sugiro que sigamos o calor, com tanto fogo ele deve ser uma criatura quente.

- Mais um engano, ele lança fogo frio, é uma criatura gelada.

- Como última tentativa, poderíamos lançar um balde de tinta sobre a criatura, que mesmo sendo invisível acabaria visível. O que o senhor acha?

- Acho que daria certo se o dragão tivesse um corpo, infelizmente trata-se de uma criatura incorpórea.

Depois de alguns instantes de reflexão o juiz prosseguiu:

- Para terminar este interrogatório vou fazer uma pergunta, e espero que o senhor que está sob juramento não falte com a verdade. O senhor pensa que as pessoas que aqui estão vão acreditar que na sua casa vive um dragão incorpóreo, invisível, que flutua no espaço e lança fogo atérmico? E que esse dragão comeu o ouro que pertence ao governo português?

- É a pura verdade excelência, nunca pensei em mentir para esta corte.

Depois do depoimento do réu o tribunal entrou em recesso, retornando duas horas depois com o veredicto dos jurados. O juiz então determinou:

- Todos em pé. Esta corte achou por bem aceitar as explicações do réu, coronel Meirelles, homem de bem, temente a Deus e cumpridor de suas obrigações. Ele é declarado inocente e terá o seu emprego de volta. Também fica expresso o repúdio contra as calúnias lançadas contra esse homem, calúnias estas que não contribuem em nada para a melhoria das condições de vida dos portugueses que habitam esta colônia. Por esta razão, a partir de hoje os caluniadores serão submetidos ao Conselho Real de Notícias, criado neste momento. Servirá para evitar que homens de bem sofram injustiças como essa que acometeu este pobre homem, que na tentativa de salvar o ouro do rei da criatura dos infernos, quase morreu chamuscado pelo fogo frio. Nada mais tenho a dizer. Amém.

Epílogo

Algumas semanas depois de libertado o coronel Meirelles raptou a amada e desapareceu neste mundo de Deus. Sabe-se que seus descendentes são muito hábeis em manejar dinheiro, condição que parece ser um dom divino. Outra característica do clã é a facilidade com que seus membros se safam de acusações.


Nota do Editor: Sidney Borges é jornalista e trabalhou na Rede Globo, Rede Record, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo (Suplemento Marinha Mercante) Revista Voar, Revista Ícaro etc. Atualmente colabora com: O Guaruçá, Correio do Litoral, Observatório da Imprensa e Caros Amigos (sites); Lojas Murray, Sidney Borges e Ubatuba Víbora (blogs).
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