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Crônicas
06/10/2007 - 10h12
Entrevista com o Capitão América
Urariano Mota
 

O ilustre senhor Paulo Carneiro chegou esta semana ao Recife. "Chegou" é maneira de dizer. "Apareceu", "desceu de uma nave", ou "saltou das páginas", seria mais próprio dizer.

Para quem não o conhece, a primeira coisa que tem a fazer é não confundi-lo com o corpo que o veste. O jornalista Paulo Carneiro é um indivíduo extremamente feio... mas que digo? Sobre a sua beleza - ou falta de - eu deveria calar. Isso porque certa vez, na Universidade de São Paulo, ele me emprestou a sua carteira de estudante para que eu jantasse no restaurante da universidade. Quando lhe objetei que eu seria barrado, ele me respondeu de imediato:

- Fique tranqüilo. O porteiro não vai notar. Você é tão feio quanto eu.

E eu jantei. Então eu quero dizer que de um ponto de vista estético o editor Paulo Carneiro é um indivíduo bem característico, se isso quer dizer alguma coisa. Entendam: ele tem um corpo que parece ter sido feito por um escultor cubista. Ou melhor, se substituirmos as linhas duras, retas, cheias de ângulos agudos dos cubistas, se retirarmos a harmonia, o efeito de composição que preside uma obra cubista, o leitor alcançará o que eu quero dizer. Mas isso se o leitor for um inteligente extraordinário, um paranormal vidente, agora percebo. Porque escrevi "se substituirmos as linhas duras, retas... se retirarmos a harmonia...", e nada deixei no lugar. Então eu digo, bem racionalmente: se substituirmos as linhas retas por curvas, mas com um queixo à feição de um paralelepípedo, se reunirmos As Donzelas d’Avignon em um só corpo de um vegetal que se assemelhe a um cilindro, e se ao cilindro impusermos um movimento sem rodinhas na base, cilindro que se mova como que tocado pelo vento do acaso, porque não pareceria ir-se guiado por força humana, então o leitor saberá o que quero dizer. E com isso imagino ter sido claro...

Como dizem os gringos diante de um obstáculo, Well. So, deixemos a apresentação física de lado. Porque esse indivíduo somente é capturado quando ouvimos a sua inteligência. E se assim é, o leitor que me acompanhe. A entrevista a seguir se deu no Bar 28, no Recife Antigo. Estamos em uma mesa a sentir o cheiro de açúcar dos armazéns do cais eu, ele e Paulo César Fradique, jornalista e professor de comunicação.

Primeiro do que tudo, como você ganhou o seu outro nome?

- Então. Como todo jovem na década de 70, que não sabia o que fazer na vida, eu parti para estudar Direito. Na faculdade, entre uma aula e outra, reunia-se um pequeno grupo de estudantes, que se punha a declarar o que lera, ou que acabara de ler. Um grupo muito fino. Dizia um: "Proust. Que maravilha é ler Proust. De uma assentada só você lê um volume inteiro, é empolgante". E eu calado. Aí dizia outro: "Pra mim, o autor é Joyce. Os recursos que ele usa de linguagem, as inversões semânticas...". E eu só assistindo a tudo, em silêncio. Até que um deles virou-se pra mim, e perguntou: "E você, já leu o quê?". Aí eu respondi, diante daquela sofisticação: "Eu? Eu só leio o Capitão América". E passei a narrar a genealogia do herói. Ganhei fama. Eu era o único, de todo o mundo culto da universidade, a conhecer a história, gênese e episódios do Capitão. E por isso os amigos somente me conhecem hoje pelo nome de Capitão América.

A essa explicação, Paulo César quer saber as aventuras do super-herói em São Paulo. A luta dele contra o Mal na grande imprensa. Agora percebo. Parece até que estão mancomunados, porque a esse pedido o Capitão América passa a contar os desastres... deste narrador que lhes fala. Como se eu não estivesse presente.

- Este rapaz sempre teve o defeito de falar a verdade. (E virando-se para mim: - Você mudou?) Pois bem. A revista Istoé, quando estava nascendo, encomendou a ele uma reportagem sobre Literatura Negra, um movimento que também estava nascendo em São Paulo. Que faz ele? Em vez de aumentar a bolha, de divulgar a novidade para o Brasil, imprensa, você sabe, é assim, "news"... que faz ele? Escreve um artigo, como se fosse um ensaio, citando Hegel e outros papas. E que dizia, lá pras tantas: "Não existe arte negra, arte esquimó, arte índia. Arte é simplesmente arte, ou não é. Esses escritores que pretendem fazer uma arte negra são de imensa disfarçatez". Ao ler a cópia, eu observei que ele cometera um erro de ortografia: a palavra não é disfarçatez, com I e R; a palavra é desfaçatez. "Cadê?", ele me disse. "Vamos ao dicionário". Fomos. Em nenhuma página existe ou existia disfarçatez, é evidente. Mas ele não se deu por vencido. "Isso veio mesmo a calhar, Capitão. É um gênio que temos interno, conspirando a nosso favor em silêncio. Veja que disfarçatez quer dizer, ’disfarça a tez’. Eu criei um neologismo. Esses jovens escritores são uns falsos negros". Resultado, a matéria não foi publicada, apesar dessa brilhante resposta.

Eu acho, particularmente, que o Capitão vive em um mundo de espelhos. Esta é a minha única explicação para essa história. Lembro-me da matéria abortada para a revista Istoé, lembro-me do artigo, até mesmo de alguma referência a Hegel. Lembro-me, talvez, é forçoso, não vou disfarçar, até do erro ortográfico. Mas a saída do erro, a maneira com que essa explicação está arranjada, só me faz concluir que essa história aconteceu foi com o Capitão América. Assim digo porque ele me joga em outra aventura, do super-herói cuja maior aventura é a sobrevivência.

- Esse rapaz teve a oportunidade de ganhar um freelance pra uma revista feminina, dessas de arte e madame. Era pra cobrir a exposição de um pintor chileno. Tudo ia muito bem até o ponto em que, já no fim da entrevista, ele disse ao pintor: - "Você se parece com duas pessoas. Uma é o poeta Pablo Neruda". O pintor ficou muito feliz. "E a outra?", perguntou. "Deixa pra lá, olvides", o meu amigo respondeu. O pintor insistiu: "Por favor, diga. Eu não me ofendo. Isso de parecer é idiotice, é tonteria". Então o amigo soltou o que lhe estava a coçar na garganta: - "A outra é o comediante Costinha". O pintor ligou para a revista e esqueceu a parte de Pablo Neruda. Pediu a cabeça do repórter. E, é claro, ninguém deixa de atender o pedido de um comediante.

Eu não me lembro bem disso. A melhor explicação que tenho é que nesses relatos o amigo, sem deixar a sala dos espelhos, desenvolve essas histórias com arte e possibilidades. Possibilidades que ele conhece muito serem nossas. Daí que o bruxo nos confunde. Daí que eu não sei se Gildo Marçal, um amigo do largo peito do Capitão, se reconhece no que segue.

- No fim do ano passado eu mandei uma mensagem de boas festas pra Gildo. Mensagem bem convencional, daquelas que a gente pode retirar do arquivo todos os anos, mudando só a data. Eu acho que Gildo não gostou muito. Sabem por quê? Primeiro porque... - nessa altura o Capitão muda a voz, baixa os olhos como um médium de centro espírita, e dá uma entonação e sintaxe que ele imagina para o seu personagem - "Ó Capitão, que é isso? Você me manda uns votos de felicidade individual, como se dependesse apenas de mim um feliz 2007..." Segundo porque, lá pro dia 4 de janeiro, recebo um mail dele, desejando-me um feliz ano novo. Havia até um certo ar de desculpa, por estar mandando atrasado. Minha resposta: "Você não se atrasou, meu amigo. Pelo contrário. Desejar feliz ano novo, depois de 2007 haver começado, é desejar muito adiantado um feliz 2008".

E continua, depois da necessária pausa:

- Mas ele fez isso por gentileza. A sua competência intelectual não lhe tira a educação da convivência. Eu estava escrevendo um artigo, e lá pras tantas senti a necessidade de fazer uma citação de Engels. Era aquela em que ele diz que a História produz gigantes quando precisa. E assim teria sido no Renascimento, com Maquiavel, Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci... mas não me lembrava exatamente das palavras, da obra. Ligo pra Gildo. E ele (voz de Gildo): "Ó Capitão, isso é da Dialética da Natureza. Na edição da Paz e Terra, está na página 147". Dito e feito. Estava lá, da forma e no conteúdo como Gildo me disse. Só não contei pra ele que eu precisava da citação de Engels pra concluir: "se cada época produz os gigantes de que precisa, a nossa, no Brasil, é a dos gigantes Fernando Henrique, Palocci, Serra..". Com o apoio de Gildo estou tranqüilo. Eu jamais cometerei o erro do editorial de um jornal de Pernambuco, que dizia, "segundo os dois grandes escritores espanhóis Ortega y Gasset...".

A conversa continua, e ele, senhor de um público enfeitiçado, declama os versos de uma canção de Orlando Dias, imitando em falsete a voz da musa na imortal Perdoa-me pelo bem que eu te quero: "perdoar-te, por quê?, se em minhas preces eu agradeço a Deus a ventura imensa de sempre, sempre te haver amado". E mais informa ao contar que os cacoetes da interpretação de Orlando, o genioso Orlando Dias, fizeram moda no Brasil. O prolongamento de sílabas nos versos gerou o tipo de cantor-liquidificador, porque a voz imitava as idas e vindas do motor desse eletrodoméstico. Uoooon, uooon, em sobe e desce de volume e extensão. E conclui, em aula magistral, a cantar: "PeeeerdOooooa esse SEEer apaaixonado, eeeeEeesse Seer desesPEeeerado...". Porque a vida quis assim, este é o Capitão América.


Nota do Editor: Urariano Mota é escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance "Os Corações Futuristas", cuja paisagem é a ditadura Médici. Tem inédito "O Caso Dom Vital", uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

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