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Crônicas
07/10/2007 - 06h02
Lição de vida
Willians Donizete Ribeiro
 

Uma sexta-feira, final de tarde. Após um dia extremamente desgastante, Rubert, dedicado profissional das "palavras", retornava à sua casa, em Diadema. Num dia como este, 18h00, parece que todas as pessoas do mundo desejam pegar o mesmo ônibus. Resultado: passageiros devidamente apinhados como bois indo ao matadouro. É incrível como as grandes cidades são compostas de problemas de ordem estrutural! Também é interessante salientar o quanto os contribuintes são desrespeitados, em serviços pelos quais mereciam tratamento pelo menos digno. E o transporte coletivo não é exceção!

Em meio àquele ambiente coletivo, mas totalmente individualizado, pois as pessoas mal se olham, também, acontecem episódios que devemos valorizar para toda uma vida. Rubert, até então, vinha completamente estressado com aquela situação desfavorável: muita gente, odor forte, semblantes carrancudos, pisões nos pés, corpo em processo de cansaço, mente em estado estanque de qualquer pensamento razoável e bonito, enfim. O ônibus, para piorar, parava em todos os pontos, um saco. Imagine que, de Santo André ao ponto onde Rubert desceria, havia um total de 32 pontos, com 32 paradas. Em meio à balburdia, o pôr-do-sol lindo despontava ao longe, com seus tons alaranjados. Uma imagem especial, logo interrompida por um brutamontes, que cortou a frente do rapaz. "Não atrapalha, seu idiota, deixe-me viver esta primazia". Os olhos metralhados de reprovação de Rubert cravejaram sua ira no estraga-prazeres que, ao contrário, nem quis saber de nada. Aliás, estava muito cansado para tanto.

Naquele ônibus havia um verdadeiro efeito inchaço. A cada parada, subia muita gente, e ninguém descia, ou quase ninguém. Um caos. Nem a menina dos olhos verdes, corpo sensual e seios durinhos, nem ela, com suas inúmeras virtudes, melhorou o ambiente. Os sortudos que puderam se sentar, nos poucos bancos, gradativamente, adormeciam e entravam em estado de sono profundo. Os que permaneciam acordados, procuravam se entreter com leituras, músicas... Se aparecia algum idoso, para não perderem o lugar, baixavam a cabeça e fechavam os olhos. Que horror! Nem os idosos merecem respeito.

Além do aperto, da premência, do roça-roça sem desejo, no ônibus havia uns colegiais adolescentes que não paravam de falar, falar e falar, sobretudo falar coisas fúteis e inúteis. "Respeitem os mais velhos. Calem a boca e deixem nossos ouvidos em paz!" Entretanto, também, era interessante observar aquela jovialidade proeminente que aflorava muita energia, pois fazia-o lembrar da não tão longínqua adolescência.

O cansaço e demais pensamentos de final do dia, ao longo dos minutos, tornava aquela algazarra em um evento isolado dentro do ônibus. Ninguém percebera, mas minutos depois, o itinerário Diadema-Terminal Diadema chegara ao terminal do bairro Piraporinha. É hora de despejar o gado humano! Um verdadeiro contraste em relação à quantidade enorme de gente apinhada do mesmo. Rubert até sorriu brandamente ao ver alguma lacunas de bancos à sua inteira disposição. De tão raro, ficou em dúvida: em qual banco sentar. Queria o da janela, mas não o da direita, por não se sentir à vontade; o da esquerda, pelo ajuste do corpo, logo lhe provocaria enormes crises de sono. Enfim, encontrou os bancos superiores do fundo, aqueles que estão posicionados num plano maior em relação aos assentos postados na plataforma. Sentou-se e relaxou. Até suspirou descanso.

O ônibus, após a transição da primeira parada no terminal para a saída dos passageiros, fez a segunda para receber outros. Não entraram tantas pessoas. Havia espaço suficiente para acomodar-se com conforto e tranqüilidade, até para conversar. Foi então, o que fizeram dois rapazes, acomodados em bancos de par em par. Nordestinos, daqueles castos, vindos de regiões sertanistas, os rapazes falavam deliberadamente no mais livre sotaque "ó xenti". Naturalmente chamavam a atenção dos demais. Rubert, por sinal, ria da forma como os ilustres dialogavam. De palavrões a aberrações, tudo era permitido. No ponto seguinte, eis que surge um simplório vendedor de balas, um menino negro e trajado com roupas sujas. Um menino pobre, que vende bala no ônibus, no melhor retrato do Brasil, ou brasis. Humildemente apresentou-se, se esforçando, com destreza, para oferecer seus produtos: balas de goma. Rubert, ao saber disso, gostou, pois queria levar um pacotinho para a sua namorada, que adora as tais de morango, laranja, limão, revestidas de açúcar granulado. Uma delícia... para quem gosta!

O menino passou de pessoa em pessoa, e, com paciência, cumpriu a missão. Vendera, enfim, alguns pacotinhos. Muitos compravam mais para disfarçar a fome; outros se mostravam felizes, pois apreciavam as gomas. "Uma é 50, três é um 1 real". "Uma é 50, três é 1 real”. No fundo do ônibus, Rubert esperava, ansioso, a chegada do menino, pois queria garantir um dos pacotinhos. No dia seguinte, ele encontraria sua amada, para ofertar-lhe o presentinho insólito. Aliás, ele sabia das predileções simples de sua namorada. "Não quero ouro, amo a sua lembrança!", ela dizia. Em meio às vendas, houve um incidente. Um dos amigos nordestinos, que também compraram as ”deliciosas gominhas”, não tinha trocado para os seus dez reais. Ele, na verdade, só queria um pacote, o que estava bom demais, pelos comentários. Em contrapartida, o jovem baleiro tinham apenas nove reais de troco para dar-lhe e, desta forma, sugeriu o que o rapaz levasse os pacotes, a fim de completar a somatória desejada. O impasse fora criado.

Os pensamentos de Rubert, naquele instante, dissiparam a vontade de comprar o pacotinho de balas, pois devotou atenção inexorável ao imbróglio no qual o pobre vendedor havia se enfiado. Esqueceu-se que se ele adquirisse um, somente um pacotinho, de 50 centavos, ajudaria a equacionar aquela milonga. Enfim, esqueceu. Ele observava, de um lado, o menino, todo afável na ânsia infindável de convencer seu comprador a levar mais dois pacotinhos e completar o lance; do outro, alguém que agira como um verdadeiro bronco, totalmente intolerante. "Por favor, senhor, compre os demais pacotinhos para fechar o troco certo, pois não tenho o dinheiro para lhe dar”. Indiferente às considerações do menino, desdenhando, até com risos patéticos, as tentativas lúcidas de resolver a arenga, o rapaz disparou: "Se vira! Tenta vender balas para as pessoas no ônibus, senão eu não levarei nada”. Que absurdo!

A humildade é uma virtude que, em tempos de arrogância, e demais enfermidades morais, ao invés de ser um princípio-mor de cada ser humano, pelas condicionantes nefastas deparadas, tornou-se algo admirável. O jovem vendedor, envolto naquela embaraçosa venda, não fraquejou, e saiu em busca de encontrar uma boa alma. O esquecimento falou mais alto em Rubert, o que depois lhe causou muito arrependimento. Ele tentou, tentou, tentou... e nada. Não havia mais como vender um pacotinho de balas. A compra seria desfeita. Com tranqüilidade, ele retornou ao rapaz, inexorável em sua idéia, comentando que não teria o troco esperado. De súbito, então, aquele nordestino esbravejou muito, para desconforto e discordância dos observadores, e disse-lhe: "Fica para você o troco!". O ônibus, logo em seguida, parou no ponto de sua descida, e ele e seu amigo partiram.

Deste ato, sim, veio a grande lição de moral desta história. Bem, os rapazes desceram e já fora do ônibus, pensaram na situação e nas humilhações impostas ao menino simples e sorridente, que apenas desenvolvia seu trabalho. Este ficou com troco e as balas, fato para ser comemorado, pois, além do dinheiro adicional, os pacotinhos excedentes tornar-se-iam produtos de venda. Que nada! Num ato de pura doçura, e demais adjetivos a serem esmerados, o menino entregou a duas moças os pacotes restantes da caixinha. Muitos olhos fitaram-no e as pessoas se alegraram com a postura adotada. Um gesto de benevolência estava no ar. As contempladas, ainda assim, relutaram em aceitar. As duas, por coincidência, estavam próximas a Rubert, que, prontamente, incitou-as a pegar seus presentinhos singelos, mas revestidos de uma bondade infindável. Elas aceitaram. Receosas, mas aceitaram aquele agrado de bom grado. Ele, todo feliz, falava: "Pode pegar. Não esquenta, pois está pago pelo moço que desceu". E ria à vontade.

Enfim, o Terminal Diadema. Final de história. Ponto final daquele ônibus, que fora protagonista desta história. A Rubert, jovem que embarcou para casa, repleto de impaciência, coube, nos passos que o conduziram à plataforma sentido Jabaquara, refletir, com fé, a respeito da vida. "Reclamo tanto, tanto, por coisas tão incipientes e fúteis, que esqueço as boas ações da vida. Que menino é aquele, com pouca idade e tanta sensibilidade de vida! Um exemplo a ser seguido. Antes de tecer críticas e blasfêmias para todos os lados, cabe-me, sempre, lembrar daquele neguinho sorridente e sábio, mesmo sem o saber”. O ônibus Jabaquara chegou. Pensativo, caminhou, a passos calmos, até ele. Entrou e, pelo vidro traseiro, pôde ver, pela última vez, o menino a vender os pacotinhos de goma, com o mesmo verniz da alegria estampada no rosto.


Nota do Editor: Willians Donizete Ribeiro é jornalista.

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