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Crônicas
07/10/2007 - 11h02
Livro a metro
Nei Duclós
 

Ler um livro é altamente suspeito: requer concentração, silêncio, solidão. Contraria os princípios da época, pautada pelo suor performático, a exposição ruidosa, o culto à superfície. Existem pessoas que conseguem devorar um romance viajando de pé num metrô na hora do rush, mas são raras, pelo menos no Brasil, onde há também escassez de trilhos.

Na prática, é difícil repassar a idéia de seriedade - confundida com pragmatismo - no momento da leitura. É pura perda de tempo, ou no máximo, apenas diversão. Pelo menos é o que sugerem as manifestações explícitas de algumas pessoas, não mediadas pelo hábito de agradar o interlocutor. Não arrisque folhear um volume, que é visto, nesse ângulo de observadores sinceros, mas radicais, como coisa de folgado, até mesmo vagabundo. Lendo, significa que está com a vida ganha.

Mas se conseguir capturar alguns trechos de Madame Bovary no original usando um teclado e uma tela, isso será confundido com trabalho. O olhar atento no computador, frente às letrinhas luminosas, impressiona. Nem sequer passa pela cabeça dos desconfiados que Flaubert seja navegável numa conexão típica de escritório.

As estantes atulhadas servem apenas para fazer figuração. Há uma boa porção de reconhecidas sumidades que usam luxuosas encadernações ao fundo quando dão declarações. É um hábito lucrativo, que exige investimento. Soube de um livreiro descolado que vende livro a metro. Por encomenda, ele forra paredes com obras verdadeiras, não com o expediente manjado das lombadas abraçando papel em branco. Possui de sobra estoques repassados por herdeiros de leitores longevos, que morreram junto com suas bibliotecas.

Conteúdos que só servem para a ostentação compõem o ambiente ideal para o capital simbólico. Intactos, ficam condenados ao esquecimento, apesar da boa vida de ambientes bem iluminados, esterilizados e na temperatura certa. Enquanto Guy de Maupassant, Joseph Conrad ou Tchecov dormem na sala de luxo, o olhar profissional dedica-se ao que realmente interessa: contratos, regras, leis, ordens, cardápios e toda a tralha publicitária.

Escrever literatura é também uma atividade condenada pela barbárie ágrafa, que domina corpos disponíveis e mentes ocupadas. É normal pretender ser astronauta ou intermediário de diamantes, mas largar tudo para produzir uma obra é um escândalo tratado com devoção. O argumento vibrante é que isso não dá camisa para ninguém, tanto é que só meia dúzia atinge uma posição privilegiada. Para o resto, é apenas hobby.

Talvez a origem de tanto equívoco esteja na estréia da cidadania no caminho da alfabetização. As primeiras letras, que são, de fato, as derradeiras, viram instrumentos de objetivos curtos. O alfabeto serviria não para compartilhar algo com Clarice Lispector ou Guimarães Rosa, mas sim porque é imprescindível nos concursos. Quem precisa de um romance, se existe o resumo?

É duro decidir que alguns centímetros de criação - um conto, um poema - são o ponto de partida para o futuro hectare legítimo no vasto latifúndio literário. É quase certo ficar pelo caminho. O que salva é a possibilidade, nem sempre remota, de atingir prateleiras acessíveis, ao alcance da mão, como um mouse. E virar um autor de janelas escancaradas, lido confortavelmente, sem despertar desconfiança.


Nota do Editor: Nei Duclós é autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); de um romance: "Universo Baldio" (2004); e de um livro de conto e crônicas: "O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento" (2006). Jornalista desde 1970 e formado em História.

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