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Crônicas
07/10/2007 - 15h01
"Fondue" de pobre
Antônio de Medeiros da Rocha
 

Antigamente havia esse problema: chovia, trovejava e era certo: lá ficava o telefone mudo, preto, de disco, como um adorno de mesa. O tempo passou, a Nova República chegou, Collor, Itamar, Fernando Henrique, com quem veio, então, Sérgio Mota, a privatização e o nosso mercado interno, sempre subestimado, não o foi no caso da telefonia, onde se ganha um bom dinheiro, que recomendaria, até por escrúpulo, evitar o que me aconteceu hoje. Ao tentar ligar para a padaria, o telefone travou, preso numa ligação cruzada, ao que parecia um interurbano.

Um sujeito descrevia para a sua namorada em Brasília uma espécie de "fondue" de pobre. O fato, de tão insólito, fixou minha curiosidade e, abandonando a boa educação, permaneci ao telefone, até esquecendo-me do pedido que queria fazer à padaria.

Como disse, a ligação estava ruim por causa da chuva desse domingo. Muita coisa não deu pra registrar, mas em linhas gerais está a descrição de importância para o assunto.

Por razões óbvias, até para não incorrer em crime contra a privacidade, não cito nomes:

"A pobreza, meu amor, se você prestar atenção, tem algo a ver com a pintura. Se decantar a dieta do pobre, vai notar como as suas refeições também apresentam tonalidades. Quando o pobre reivindica uma reciclagem na cesta básica, o que ele está pedindo é simplesmente uma variedade na qualidade da mortadela. Por que a insistência na ‘monocromia’ da marca ‘aurora’, se pode fazer como a pintura, que não se limita a uma cor só? Meu ‘fondue’ (é assim que se fala?), hoje, pela segunda vez, não ficou bom e tenho a impressão de que, ao invés da ‘aurora’, a marca fosse ‘sadia’, ou mesmo a ‘perdigão’, a mortadela não teria solado e ficado tão preta, quando eu botei fogo na frigideira, que é (não é?) como se faz um ‘fondue’. O fogo lambeu a frigideira, levantando a labareda até o teto.

Sorte que está chovendo: rápido levei a frigideira para a área, mas eu, que pensava que a chuva resolveria o problema, resolveu só em parte: o solado de borracha de ‘aurora’ preta acabou de um jeito que agora só aceita corte se for feito pela minha tico-tico. Mas, tudo bem, fritei um ovo, passei o pão dormido na chapa, enquanto terminava de ferver a água com que iria completar o café da manhã, já que dividira o pó, que sobrara na colher, para o lanche da tarde.

Começo a discordar de Chaplin. A pobreza leva à arte pela criatividade que exige do pobre-diabo. Um ‘fondue’ de mortadela não é uma concepção simples. Exige sofisticação e, na ausência desta - afinal pobre é pobre sob quaisquer circunstâncias - o jeito é consolar-se, não ligando muito para a execução e esticando logo o pano de prato queimado pra iniciar a refeição sobre o pedaço de vidro que serve de nicho em cima da mesa, suja de tinta, cheia de pincéis, de pés de palito. Terminei de comer e vim até aqui só pra te dar um beijo. O domingo ainda será longo, pois tenho a tal pintura de encomenda pra terminar. Um beijo".

A linha cruzada destravou, mas eu continuo com problema na linha.

"Agora só amanhã, senhor, lamento", informaram-me na companhia telefônica.


Nota do Editor: Antônio de Medeiros da Rocha é jornalista, escritor e artista plástico.

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