10/09/2025  19h20
· Guia 2025     · O Guaruçá     · Cartões-postais     · Webmail     · Ubatuba            · · ·
O Guaruçá - Informação e Cultura
O GUARUÇÁ Índice d'O Guaruçá Colunistas SEÇÕES SERVIÇOS Biorritmo Busca n'O Guaruçá Expediente Home d'O Guaruçá
Acesso ao Sistema
Login
Senha

« Cadastro Gratuito »
SEÇÃO
Crônicas
13/10/2007 - 11h03
Um mundo feito para enlouquecer
André Falavigna
 

Começou assim. Há alguns bons anos. Meu nome estava, como hoje, sujo. Mas eu tinha emprego regular, em carteira, como hoje. Numa empresa de médio porte, mas multinacional, igualzinho agora. E essas empresas, por motivos óbvios, abrem contas salários para os funcionários. Tal tipo de conta pode muito bem ser uma conta-corrente que, muitas vezes, vem associada à outra conta, poupança. O pessoal do banco vai até a empresa que o contratou (ou fazem você ir até o banco, o que é o máximo), anota e confere seus dados, recolhe cópias de documentos, faz você assinar toda a papelada e, depois, envia-lhe o cartão da conta. Se você não tiver o nome sujo, ainda pode ganhar Cheques, Cartões de Crédito, Limite, Crédito Pré-Aprovado e, com jeitinho, até cafuné.

Mas, no meu caso, nada disso correu muito bem. Como eu tinha o nome sujo, o Itaú não me deu muita atenção: deveria ter me enviado apenas o Cartão e um passar bem, sem Limite, sem Cheque, sem Crédito. Cafuné, nem pensar. É justo. Mas eles se excederam um pouquinho. Não me mandaram nada. Mesmo após duas tentativas, intervaladas por cerca de seis meses, mantiveram-se impassíveis, búdicos mesmo. Nada de Cartão. Depois de mais de ano na empresa, ainda não sabia o número da minha conta. Como recebia? Ora, recebia em Cheque. Sem cruzar, porque não tinha onde depositar e era obrigado a sacá-lo. Às vezes, o Itaú decidia que eu poderia sacá-lo em qualquer uma de suas agências. Às vezes, decidia que não, que só poderia fazê-lo na agência do emitente do Cheque. Sempre, quem se estrepava era este que vos toma o tempo.

No final, eu acabava recebendo de qualquer agência. Algumas aceitavam endosso, outras não. Certos gerentes corporativos entendiam que aceitar endosso era algo endossável. Outros, não queriam endossar esse endosso para a questão do endosso e nada os demovia dessa posição que eu, por sinal, reputo inendossável (palavra, aliás, inexistente). Às vezes, alguém conseguia sacar a grana com meu endosso. Outras, me faziam ir à agência. Quando chegava lá, às vezes diziam que não iria adiantar porque aquela não era a agência emitente. Às vezes, nem reclamavam. Mas sempre peguei fila. Isso tudo porque sempre contei com aquele amuleto que a gente leva na carteira e sem o qual não somos gente: o RG. No Rio, IFP. Vocês sabem o que é. Sou contra, mas já me ajudou muito.

Até que me roubaram o RG. Para obter outro, basta a Certidão de Nascimento (sou contra, também) e uma Foto Três por Quatro (sou totalmente contra, nem precisava falar). Entre o roubo e a possibilidade de tirar o RG, caiu meu salário. Não vivo de favor há alguns anos. Se não tenho meu salário, não tenho nada. Sem nada, não há como (e, para ser sincero, nem o porquê) providenciar outro RG. Sem dinheiro, sem RG. Isso até você ir ao banco. Lá, lhe ensinam: sem RG, sem dinheiro. Caso você tenha que, por conseqüência lógica dessas determinações, ir morar na rua, por favor, não mude de assunto.

Levei minha Certidão de Nascimento à agência emissora do Cheque do meu salário. Eu e minha Certidão, juntos, no dia exato do vencimento do Cheque, na agência exata onde se encontrava o dinheiro que o Cheque representava e que deveria ser dado a mim, em pagamento pelo meu trabalho. O Cheque também estava comigo, para o que desse e viesse. Naquele tempo, o Poupa-Tempo não poupava tanto tempo quanto nos tempos de hoje. Só faltava o RG. O caixa não quis pagar. Havia uma Circular do Itaú que dizia que, para sacar Cheque, só com documento com foto.

Compreendi a situação do caixa. Caixas cumprem Circulares e ponto. Não ganham para interpretá-las. Há quem ganhe. Entra em cena a figura do Gerente. O Gerente é aquele camarada que compreende as Circulares e que, se souber utilizá-las, pode começar a sonhar em ser promovido a redator de Circulares.

A figura do Gerente me fez notar que a Circular destinava-se a evitar que as pessoas que não fossem as verdadeiras destinatárias dos Cheques os sacassem. Em os sacando, poderiam colocar em risco o verdadeiro titular do Cheque, o sujeito que deu o Cheque, o banco, o Sistema Brasileiro de Pagamentos, o Banco Central, nossas relações internacionais, a ONU, os Anjos do Senhor, o próprio Senhor e, seguindo assim, nessa ascendente, até mesmo Olavo Setúbal poderia dançar nessa história.

Por meu turno, eu o fiz notar que a Circular era totalmente dispensável no caso. Afinal de contas, as chances de um camarada ter roubado, além de meu Cheque, minha Certidão de Nascimento e, depois, ter escolhido justamente a agência de origem para descontar o Cheque, bem no dia exato em que o dito cujo venceria, era realmente mais ou menos absurda. A não ser que, pelo fato de não estar de posse de meu RG, eu não pudesse ser considerado eu mesmo, o que me colocaria na posição de ladrão de meu próprio Cheque. Essa afirmação, se comprovada, seria muito curiosa, porque implicaria em me transformar em algo mais do que em um bandido. Eu seria um bandido esquizofrênico, cuja consciência cindida via agora uma de suas duas partes atacar a conta da outra para, depois, ceder a essa outra o fruto desse roubo a fim de que ela, a outra, desse cabo daquela parte assaltante e autodestrutiva, mediante a aquisição de um novo RG, graças à apresentação da Certidão de Nascimento e sua amiga, a Foto Três por Quatro.

Sentimos certa resistência na figura do Gerente. Insistimos. Eu e Eu.

Nesta nova tentativa, o fiz observar que se a hipótese da esquizofrenia não fosse a saída e, por outro lado, eu fosse mesmo o bandido, e não eu, eu, o bandido, corria imenso risco de me deparar comigo, o verdadeiro eu, tendo em vista que eu era um estúpido que tentava sacar o cheque roubado de mim mesmo no mesmo dia que o sujeito que era o verdadeiro dono da minha Certidão de Nascimento tentaria ir lá, sacar o dinheiro que era dele. Ou meu, já nem sei mais. E que, dado mais esse risco, era provável que eu fosse mesmo eu; que isso, inclusive, garantiria a todos a segurança e o conforto de permanecer num ambiente em que o encontro entre mim e o bandido que eu não era seria perfeitamente impossível.

Não funcionou. A figura do Gerente me disse que não poderia desautorizar algo como a Circular. Assim, eu deveria partir para o limbo e esquecer meu salário ali, onde Olavo Setúbal cuidaria dele para o verdadeiro mim.

Mandei chamar a Circular, portanto, e repreendi violentamente a figura do Gerente por me fazer perder tempo com ele, camarada que, de mais a mais, não mandava merda nenhuma.

Ele me disse que isso não seria possível, que até poderia me mostrar a Circular mas que, no final, eu não poderia falar com ela. Explodi. A Circular não iria me atender por quê? Quem essa Vaca pensa que é? A Circular é uma Puta Ancestral, feita a Senhora Mãe da figura do Senhor Gerente, que é um Corno a não mais poder. A Circular e a Mãe do Senhor, que aliás creio serem criaturas coincidentes, assim como eu e meu ladrão de cheques meus que, inclusive, possuímos a mesma Certidão de Nascimento, o criaram no cais, a leite de estivadores furunculosos e soropositivos, e a figura do Senhor Gerente vai me perdoar mas vai é tomar bem dentro do cu agora mesmo, debaixo é de porrada nessa boca de Filha de Uma Puta do Caralho de Circular do Cacete, seu Corno, não foge não, que agora é porrada.

Terminou assim. A figura do Gerente e a Circular entraram em acordo comigo. Ou com o ladrão de Cheques e Certidões de Nascimento ao Portador. Não entendi bem.

Bebi aquele salário todo. Com o troco, mandei fazer um novíssimo RG. Ficou lindo, o filha da puta.


Nota do Editor: André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.

PUBLICIDADE
ÚLTIMAS PUBLICAÇÕES SOBRE "CRÔNICAS"Índice das publicações sobre "CRÔNICAS"
31/12/2022 - 07h23 Enfim, `Arteado´!
30/12/2022 - 05h37 É pracabá
29/12/2022 - 06h33 Onde nascem os meus monstros
28/12/2022 - 06h39 Um Natal adulto
27/12/2022 - 07h36 Holy Night
26/12/2022 - 07h44 A vitória da Argentina
· FALE CONOSCO · ANUNCIE AQUI · TERMOS DE USO ·
Copyright © 1998-2025, UbaWeb. Direitos Reservados.