O hobby em Vandinha é derreter beijos em pôsteres de artistas da tevê. Sonha com as miragens. E, sonhando, viaja no desenho dos lábios, na curvatura do nariz, enquanto vai salivando a boca para a aproximação longa e enamorada. Suspira, até. Mas o faz tão-somente entre quatro paredes. Porque soaria estranho a flagrassem no trabalho, caixa de supermercado, hipnotizada sob estes delírios. Não há, portanto, quem desconfie desse ponto fraco. Nem o gerente, tampouco as amigas. Nem mesmo o mais íntimo dos clientes - Seu Mário, sessentão -, que vai ao estabelecimento três vezes ao dia só para declarar-lhe paixão desmedida. Ela fazendo papel de desentendida, a que se desvencilhasse. Não era seu tipo e, afinal, se prometera a Amâncio logo aos 17. Esperavam unicamente uma folga financeira para encomendar casinha e casamento. Noivos já estavam. Haviam se conhecido na festa de Natal da empresa. Ele controlador de estoque, inibido. Ela funcionária nova, recatada. Se desmanchou ao enxergar nele sobrancelha de protagonista novelesco, furinho peculiar no queixo... A geografia dos lábios e a linha do sorriso lembrando linhagem de atores terminaram por completar seu rosário de certezas. Queria tê-lo. Um tropeção arranjado, e logo estariam falando (mal) de produtos, fornecedores, chefes, e (bem) de roteiros amorosos da telinha. Daí foram se prometendo. Ambos em assumida virgindade. Amâncio beirando os 20 anos. E os dois à tônica invariavelmente romântica de que haviam nascido um para o outro - como se divertissem espocando bolinhas de sabão. O destino, acreditavam, cuidaria do resto. Faltou, naturalmente, combinar com os deuses. E foi assim que naquela quarta-feira de outubro, as primeiras chuvas de primavera se anunciando, deu-se o encontro com o sobrenatural de almeida. Nelson, que por sobrenome assinava Rodrigues, adentrou o recinto marcando as passadas com sua bota bico fino, salto fazendo eco. Mirou o bastante, a localizar o setor de bebidas, mapear o de música e perscrutar o que haveria de novo na seção literária. Duas garrafas, três CDs, cinco livros agrupados, acendeu o cigarro diante do caixa. Sentiu candura na voz que o repreendia: "Senhor, aqui não se pode fumar". Fez ar de James Dean, encarando a funcionária em diagonal. Ela repetiu, jeito ainda mais cândido. Ele ensaiou uma reação tirânica, mas foi desinflando as intenções, ao dar com aquela silhueta. Amassou o cigarro entre os dedos. E foi se aproximando indolente do rosto da menina. Tremiam. O hálito do tabaco dominando a cena. Fez como farejasse, roçou apenas a boca à dela e saiu. Ela por dias sem se esquecer daquela face. Traços marcantes. E, surpresa, semana seguinte era ele à fila às 8 horas, ao meio-dia, ao fim de tarde. Exibia atmosfera de apaixonado. Olhar e fala de galã como artimanhas essenciais de convencimento. Mas não eram meramente teatrais. Até convencê-la a um encontro ("só para conversar"). Havia um singular problema: ela prometida a Amâncio fazia mais de dez anos, se guardando virgens, poupando moedas, envernizando juras de querer. Não teria coragem. Pior: ele casado. De resto, interpretou que seu segundo grau incompleto, a visão de mundo resumida ao telejornal noturno e a abissal falta de identidade com a literatura a tornariam minúscula diante de Nelson. Disse não três vezes, em guerra com o desejo que a incendiava por dentro. Ele declaradamente apaixonado. A fantasia ainda devorando, Vandinha voltou a negar. Não, não e não. Tentou uma frase de efeito para fechar de vez aquela porta. Deixou num bilhete de despedida: "Eu sou a noite, você é o dia, e não há milagre que permita nos encontrarmos". Viu os olhos dele marejando na partida. Sentiu sinceridade. Cada um tomou seu rumo. Deu-se, então, naquele outubro, fenômeno que ciência alguma por ele esperasse ou pudesse explicá-lo. Calor, três da tarde. Assim, sem prévio aviso, a lua foi delicadamente se interpondo à circunferência do sol. Dele se enamorando. Era forma envolvente de eclipse não autorizado. Segredo só de Vandinha e Nelson. Mas que o mundo inteiro, embriagado pelo acaso, parou para ver. Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia, onde publica às quartas-feiras.
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