No aguardo do Juízo Final, o homem só virtudes fedia. Na sala escura onde intuía a salvação, entre lâminas que esvoaçavam na iminência da degola, mantinha-se calmo: fizera por onde, o veredicto o favoreceria. Mal se continha de soberba. Afinal, em comparação aos demais, destacava-se em pureza: vivera décadas e nunca dissera palavras baixas, desconhecia jogos e ignorou o aliciamento dos vícios, sem capitular. Estava pronto, portanto. Mas o fato era esse: ele fedia! Das axilas, das virilhas, o hálito... Ah, se ele mesmo não suportava o próprio cheiro, como pretender a redenção? Qual a defesa para absolver esse homem? Porque, se assim cheirava, algo nele apodrecera. Se apodrecera, não estava tão limpo conforme se iludia. Buscou, então, a resposta na infância, quando engolia a contragosto o copo de leite que a mãe lhe impunha. Dali em diante, aprendeu a engolir de tudo, a expressão sempre satisfeita. Conformara-se, cordeiro. Portanto, o que fedia em si – entendeu, tardio – era a obediência, a incapacidade de urrar o tão humano NÃO. Nota do Editor: Daniel Santos é jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
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