Enquanto tomam o chá das cinco, duas bichinhas afetadas conversam. As guloseimas dispostas na mesa não são das mais caras. Mas a maneira como são dispostas sobre o vidro fumê da mesa dão uma harmonia e sofisticação personalíssimas. Descansos coloridos apóiam os pratos e talheres. A quitinete é pequena, tão pequena que parece não caber tantas tralhas que se espalham pelos quatro cantos como um museu do insondável. Um museu eclético, ou com um acúmulo de estilos. Peles, jóias, casacos, mantôs, echarpes, chapéus, cangas, fitas e laços de todas as cores, caixinha listrada contendo os apetrechos de costura. Nas quatro paredes, pôsteres das divas, de todos os tempos. Tudo em seu devido lugar cronológico. O beliche no canto esquerdo está coberto com colchas floridas. As flores fogem da cama e se espalham pelas almofadas, tapetes, quadros. Dir-se-ia ser um lugar aconchegante, se o colorido, exacerbado, não nos cegasse. Uma é loira, com idade não identificável. A outra morena, neófita, magérrima como ela só. - Mulher – diz a primeira – você viu o bofe da festa de ontem? - Qual deles? – responde a outra. - Como assim, qual deles?! Bofe é bofe. A gente sente de longe. - Sim, querida, mas é tudo tão confuso hoje em dia. Uns se dizem gays, bissexuais, metrossexuais e outros sexuais. Uma tremenda salada grega. - Sabe que você tem razão! Bi. Eu também fico tão confusazinha. - Veja bem, daqui a pouco os cientistas, sociólogos ou outros profissionais terão que definir quem é quem nesse mercadão. Tomam um gole de chá, mastigam um croissant, passado antes pelo microondas. - Bicha, vamos tentar uma nova nomenclatura. - O Marquinhos. Que tipo de bicha ele é? - Ah!, sei lá. Ele é uma bicha-fashion. Enquanto as griffes pensam em lançar uma nova moda, ele se adianta e sai na frente. Chega quase a ser uma bicha-fashion-telepática. - Que horror! Um escândalo! - E o Fernando? - Uau! Fernando é bicha-homem. Sem trejeitos, sem afetações. Roupas de homem, cabelo de homem, voz de homem. - Vou confessar uma coisa – mas só entre nós – se ele não gostasse da fruta... Oh! Céus, eu faria ele. - Queridinha, não antes de mim – Ambas riem diante da confissão. - E o Waltinho! Êta bichinha temperamental! - Waltinho é bicha-mulher. Veja só, darling. Ele faz as sobrancelhas, passa uma basezinha básica. Chega a ficar bege. E as roupitas? Todas unissex. Acho que divide o guarda-roupas com as irmãs dele. Mas não toque no assunto com ele. É caso de morte! - Ai, Bi, como você é venenosa. Cruzes! Quero morrer sua amiga. - Ora, então morra! - Lindinha, e você? Seria uma bicha meta-meta? - Pára de graça, Bi. - Pela manhã é uma coisa, à noite, se transforma. - Bicha, vamos definir as amigas. Nós somos apenas observadoras da metamorfose ambulante dos mutantes terrestres. - Então, tá! Mas que você é meta-meta, não resta dúvida. - Meta-meta, não! Eu sou drag-queen. - Vivo do meu talento. Faço a mulher nas boates pra ganhar a vida, tá! Nunca pensei em ser mulher. Acho que nem gostaria. Menstruação, TPM, gravidez. Nem pensar... Perda de tempo. - Sou uma DRAG-QUEEN. E ponto. - Então, tá! - E o André, hein? - Ele é muito fofo, não! Deixe-me ver... André é bicha-gay! - Oh! Que redundância, Bi. - Sim, ele é bicha-gay. Aliás, a comunidade é composta de bichas-gays. Elas são as poderosas e fazem as coisas acontecerem. - É, é! - Sim, é. E ponto. Eles não passam batido, mas sabem se impor. É algo quase natural. Olhou, bateu o olho, não há dúvida, é gay. - Mas, então, ele é bicha-passiva ou ativa? - Não, querida, quanto mais pinta der, menos passiva é. E o contrário também é fato. - Pera aí, Bi. Você tá me confundindo. Quanto mais, menos é... É isso? - Mais ou menos. É a inversão dos papéis. - Preste atenção: O Marquinho é bicha..., aliás, que tipo de bicha, mesmo? - Sem definição. - Não, bicha, sem definição não existe. Elas só andam em bando e precisam de classificação. - Marquinhos é bicha-travesti. Parece uma bicha-mulher-passiva, mas faz a linha ativa. - Tá confuso. - Bi, lindinha, quanto mais mulher, mais ativa na cama. A sociedade exige mudanças constantes para sobrevivência da espécie. O tempo mudou as posições. - Jura? - Juro. - E quem é bicha-metrossexual? - Ah! sei lá! Os atores, modelos, o pessoal da TV, cinema, rádio etc., são todas bichas-metrossexuais. Gostam do meio, defendem nossos direitos, mas não se envolvem. Mas são de futuro incerto. Podem casar e ter filhos. - Não saíram do armário, então? - Hum! Do closet, melhor diria. - Então, tá! - E você, bicha sabe-tudo, que tipo é você? - Sou bicha-bicha. - Um pouco de todas forma meu protótipo. - Bicha-bicha... então tá! - A bicha-bicha pega um reta, acredita e vai. - Simples, assim? - Simplérrimo. - Ah, darlijng, me lembrei de outro tipo: a bicha-corre-corre. - Bicha-corre-corre? Que é isso? Um meio de transporte? - Aquele que numa rave GLS beija uma mulher num canto. Se arrepende. Saí correndo e beija um bofe no canto oposto. É a mais triste. Sempre acaba sozinha. No dia seguinte, te encontra na rua, muda de calçada. É a problemática do meio. Nosso pior pesadelo. - Tem a bicha-simpatizante, também! - Aquele tipinho que vai a passeatas pra dar força ao movimento, entende! Ninguém sabe muito sobre ela. Tá em todas, mas nunca é vista com ninguém. Dizem que só transa a sete chaves. Com garotos de programa vendados. E por telefone, pode? - Se atualize, mona, agora é pelo MSN. - Jura? - Juro. - E tem a bicha-pitbul. Faz academia e tudo. Os músculos querem fugir pela camiseta dois números menores. Sofrem de homofobia grave. São nossos piores pesadelos. Quando identificadas, atiçam o cachorro sobre as bichas. - Ah! Cansei de discutir essa diversidade! Pegam os guardanapos com motivos em alto relevo, e enxugam os cantos das bocas. Nota do Editor: Tito Moreira é jornalista.
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