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Crônicas
24/10/2007 - 13h04
Só mais um trago, doutor
Eduardo Murta
 

Os dedos em presilha dão bem a conta do gesto que mais empresta felicidade a Rezende. Está sempre envolto numa aura densa de fumaça. Um ritual quase orgástico, onde quer que estivesse. Até protetores faciais para poder se divertir sob o chuveiro ele encomendara. E nem espantava mais à mulher o despertador tocando às 3 da madrugada, a que se pusesse de pé rigorosamente para degustar um cigarro acompanhado de conhaque e retornar à cama.

Às 6, se levantar para o segundo do dia. E fossem para outro lado com os tais chiqueirinhos de segregação. Se ninguém, a não ser ele, pagava seu aluguel, seus impostos, por que render satisfações? Compreendia os que vinham com preocupação sincera, na linha do "é preciso cuidar do coração"... Mas que se danassem estes também. Nem mesmo se importava com as manchas praguejando os dedos, os dentes se convertendo em cores outras. Queria era o orgasmo do que via como uma celebração.

E ai de quem o tratasse como a um viciado. Avó, mãe, irmãos, amigos e a quase ex-esposa já tinham provado desse amargor. Enxotados numa sem-cerimônia de enrubescer cadáveres. A ponto de, por meses, travar diálogos unicamente com dois amigos diletos - Gomes e Mendonça. O cigarro, claro, dominando os assuntos, porque era trio imbatível nesse particular.

A turma tendo como símbolo seu Fininho, 103 anos, o cigarrinho inabalável sempre à mão esquerda. A cinza fazendo curva ao rosário de conversas. Seria prova inconteste, diziam, de que o tabaco só matava cedo os que de fato vinham com predisposição precoce para morrer. O ídolo contabilizando três enfartes, quadro de enfisema, asma, foi partir num domingo sonolento, em que a notícia atropelou os companheiros jogando sinuca, a bola 7 por decidir. Não haveria fim de jogo. Seu Fininho agora era fumante também na cota dos mortos. Mas por velhice, sublinhavam.

Encomendaram corbélia, mensagens melosas nas faixas. E, tarde seguinte, eram os três amparando o caixão. Se perguntando como ficariam, ausente o decano-mestre. Aquilo abalara a confraria. Mendonça logo fez promessa de largar. Gomes confessou, espanto geral, que havia anos não tragava. Ficou Rezende irredutível. Crescera fantasiando, com cigarrilhas de chocolate. Passara, aos 8, aos enroladinhos de papel almaço com folhas de chuchu...

Envergara cachimbo, charuto, os preparados de palha, até os de maconha (para conhecer, e só). E prometia nunca dobrar-se, empunhar bandeira de resistência num mundo cada vez mais anti-tabagista. Em quantas ocasiões fora posto fora de restaurantes, repartições públicas, bibliotecas, por se recusar a dispensar o cigarro? Perdera a conta. Se afastara também de uma coleção de gente querida.

Nem mesmo a esposa, solidária, restara. Na manhã de sábado, segunda ladeira da velha Sabará, ele solitário, veio o tremor ao peito. A sensação imitava vulcões em ensaio de erupção. Parou, buscou refúgio num poste próximo. Ainda se recobrava, quando ouviu a voz chegando, entre solícita e repreensiva. "Este é o primeiro aviso". Descobriria mais tarde se tratar de Cigana Rosa. Beirando os 50, como ele, e premiada com visões que a especializaram em salvar candidatos a suicidas e fumantes a caminho da condenação.

Não era bela. Tampouco feia. Carregava, por outro lado, um quê de insinuante. Caíra no gosto de Rezende. Mais. Se tornara, no fundo, essencial àquele exercício cotidiano de sobrevivência. Ele reconhecendo que o fumo se convertera mesmo em ameaça. Mas irredutível. Parar? Jamais. No limite do risco, propôs foi casamento à ciganinha. Seguiria com seus rituais de colocar os dedos em presilha e se deixar envolver pela fumaça densa, orgástica. O anjo a tiracolo que tratasse de salvá-lo. E, na emergência, avisasse a tempo de pelo menos mais um trago. Só um.


Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia, onde publica às quartas-feiras.

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