Em primeiro lugar: estaríamos muito melhor se perdêssemos essa mania de acreditar que seja possível ao camarada ter lá sua opinião sobre a vida, tentar expressá-la através duma obra de arte e, em conseqüência disso, abrir os olhos de todo o mundo para a acuidade maravilhosa contida naquela opinião fantástica. Não é assim que funciona. Aliás, não é assim sequer que é para funcionar. Eu não sei se vocês se lembram, mas quando se quer convencer alguém de que estamos certos acerca de algo, o honesto é a gente sair argumentando, apoiando-se na lógica, citando fatos, comparando idéias, essas coisas. Se, em vez disso, você optar por letrar músicas de protesto ou musicar letras de protesto, prepare-se: o risco do tiro sair pela culatra é imenso. Portanto, até que alguém me prove o contrário, não vejo porque levar a sério muitas das coisas que os artistas dizem a respeito do próprio trabalho, sobretudo no que os ultrapassa. Mais ainda: recuso-me em ceder àquele espanto bocó que, recentemente, tornou-se uma das marcas da sensibilidade e do refinamento intelectual: o sujeito pega determinado livro, escrito dois séculos atrás e hoje encarado como bastião do pensamento, sei lá, conservador, e diz assim: “E o irônico de tudo isso é que o autor tinha as mais profundas intenções revolucionárias!”. Grande coisa, a intenção do artista. Grande coisa, as convicções políticas dele. Desde o dia em que o dito cujo resolveu lidar com assunto de gente grande, é bom que se conforme: quanto melhor se revelar sua técnica e maior seu gênio, menos sob seu controle estarão as interpretações possíveis e legítimas que se farão acerca de sua obra. Artista não é filósofo. É por isso que Leni Riefenstahl pôde ser tão nazista quanto lhe veio à veneta e ainda assim produzir arte em alto nível. É por isso que Graciliano Ramos pôde achar Stálin a coisa mais fofa do mundo e, entretanto, ter sido o gênio que foi. Chico Buarque adora Fidel Castro. De meu lado, acho Fidel um tremendo canalha. No entanto, tenho e gosto de diversos discos de Chico Buarque. Eu cobro coerência e responsabilidade histórica de quem vive para pensar. De Gabriel Garcia Márquez, quero livros bons. Se ele, além de escrever, resolve meter o bedelho nas disposições gerais do universo, ele é que se vire, sozinho e depois, com a própria consciência. Não conte comigo. Ponto. É a vida. Onde quero chegar: até desconfio do que os autores de Tropa de Elite gostariam de dizer acerca de quase todos os assuntos do dia. O caso é que estou cagando e andando para isso, pelo menos no que diz respeito ao filme. Interessa-me muito mais as impressões que provocaram em quem foi ver Tropa de Elite. Afinal de contas, é a isso que se prestam as obras de arte. Se alguém se dispusesse a levar a sério a questão do tráfico, acabaria batendo com força, gosto e de frente em alguns dos mais caros mitos de nossa intelectualidade. O filme é sério. A porrada, inevitável, aconteceu. E voou estilhaço para tudo quanto é lado. Vamos lá. Em primeiro lugar: Capitão Nascimento, ao apresentar o dono do morro, justifica o camarada. Diz que ele pode ter sido empurrado para aquilo pela vida engendrada na dificuldade. Diz, ainda, que quem o deixa puto é o sujeito que tem as oportunidades todas e escolhe cair nessa. Ocorre que há uma porção de pobres na favela; alguns têm a casa invadida pela polícia, outros levam sopapos, mais alguns têm de fugir da troca de balas (às vezes, inutilmente) de uma guerra que não é a deles. O Capitão Nascimento pode dizer o que quiser: quase que a totalidade dos moradores da favela cresceu sob as mesmas condições do dono do morro, mas prefere subsistir de maneira, como direi? Socialmente menos transformadora. Os traficantes do filme vendem drogas, ora vejam só. Os policiais corruptos do filme facilitam a vida dos traficantes, que assim vendem drogas mais tranqüilamente. Para tanto, os traficantes partilham o lucro obtido com policiais corruptos, lucro esse que a gente fica sabendo que é proveniente do tráfico. Quem diria? E os consumidores de droga do filme, para o espanto geral da nação, têm de comprar a droga em algum lugar. Daí, dão dinheiro aos traficantes. Você pode torcer isso tudo do jeito que quiser, mas não vai conseguir eliminar três componentes da maçaroca. O primeiro: é tudo verdade. O segundo: os usuários de drogas colocam as armas que a bandidagem precisa nas mãos da bandidagem. Isso é assim porque por mais que haja policiais corruptos, ainda há outros honestos que, por seu turno, possuem armas e que, se puderem, prenderão os traficantes, que precisam também eles de armas para se defender dessa ameaça. E não, não me esqueci do terceiro componente. É o seguinte: isso tudo tem certa implicação moral. Muito mais maniqueísta do que imaginar que policiais são sempre bonzinhos e bandidos sempre malvados é imaginar que não existam policiais honestos. Pois o Capitão Nascimento é a primeira personagem cinematográfica tipicamente brasileira que é policial e é honesta. As crianças que virem o filme vão torcer pelo Capitão Nascimento e contra os traficantes. Mais ainda: contra os universitários e, quiçá, contra um tal de Fucô, que só pode ser monstro de desenho japonês. É constrangedor dizer isso, mas em se tratando de cinema nacional esse detalhe não é menos do que revolucionário. No cinema brasileiro, o bandido quase sempre é vítima do capitalismo e o policial, o safardana a serviço do estado burguês opressor. Isso sim era maniqueísmo na veia. Dessa vez, o policial é uma pessoa, um ser humano. Repleta de defeitos, é verdade; mas uma pessoa. Tem mulher, filho, sofre, vive na merda. Ah, que pecado. Policial gente não pode. Policial é o único tipo de pobre que não pode prestar. Pobre pode ser até traficante, assassino e violador de ovinos, porque a vida o obrigou a tanto. A menos que for policial. Aí não pode nem ser vertebrado. Esse Padilha talvez não tenha idéia do tamanho do rombo que abriu. Capitão Nascimento tortura garotos. Faz busca e apreensão sem mandado. Brutaliza senhoras indefesas que, para o azar delas, não fizeram bom casamento. Apaga gente e põe na conta do Papa. Faz o diabo. Tudo aquilo é crime. Sou contra tudo. Mas não perdi o senso de hierarquia quanto à intensidade das coisas boas e más do mundo. Nem eu, nem a massa de pessoas que transformou Tropa de Elite em febre, inclusive pelo expediente altamente popular de pirateá-lo. Capitão Nascimento virou herói? Se virou, foi primeiro naquele estrato da sociedade que, segundo nossos melhores sábios, deveria estar nos assaltando, mas que prefere ver é bandido ser passado no fogo. Há muitas verdades dolorosas por trás disso. Pela ordem: a opinião do cidadão comum acerca das drogas, do tráfico, da polícia corrupta e dos estudantes que partilham da “consciência social” do lumpemproletariado, para ficar na melhor tirada do filme, coincide com a do Capitão Nascimento. A imensa maioria das pessoas não usa drogas e não quer pagar a conta de quem as usa. Mais: nem os pobres engolem a idéia de que a pobreza é condição prévia para a criminalidade, ou mesmo a sua conseqüência mais óbvia. Pelo contrário. Isso lhes é altamente ofensivo. Os pobres trabalham muito, ganham pouco e não roubam ninguém. Não atrasam nem crediário. Perguntem às Casas Bahia. E, quando alguém resolve sair por aí barbarizando, é quase sempre para cima deles. Então, aparecem sujeitos de fala mansa para lhes dizer que tudo se deu desse modo porque aquele seu algoz era pobre, ou excluído, ou oprimido. Sob essa ótica, criminosos são sempre vítimas que, cheias de nobreza e valentia, optaram pela reação (a não ser que sejam, além de criminosos, policiais; nesse caso eles não prestam mesmo). Na hora em que se tem que dar razão a uma dessas visões de mundo, com quem vocês querem que as pessoas comuns fiquem? Entre a língua dupla e o pecador, elas ficam com o pecador. O pecador é humano. A língua dupla fede a enxofre. O Capitão Nascimento pode ser muita coisa, mas sabe de que lado está. Coloquem-se no lugar das pessoas que ainda pautam a vida pela distinção entre o certo e o errado. Fuzilar traficantes sem julgamento, ao arrepio da lei, pode parecer-lhes errado o quanto for; ainda assim parecer-lhes-á menos grave do que dominar sob armas uma comunidade, submetê-la à lei do terror, estuprar, seqüestrar e assassinar, tudo isso para que eu e você possamos dar uns tirinhos por aí, discretamente, às escondidas. Tenham a santa paciência. Vocês sabem do que estou falando. Não sou o juiz de ninguém, cada qual sabe o tamanho da própria corrente. Daí a fazer-se de tonto vai uma caminhada longa cujo destino tem de ser algo assim como a danação eterna. Há muito mais o que dizer sobre o filme. O jovem universitário que brinca de traficante, Deus meu, ele é um clássico. Sobretudo pela postura auto-suficiente, irrefletida, pela cara-de-pau involuntária. Os safanões que lhe aplicam no meio da passeata, evento daqueles nos quais se propõe, com todo o cinismo possível, que o combate à violência constitua-se exclusivamente de compungidas exortações em prol do bom-mocismo róseo (afora a urgente conversão a esse socialismo para ricos que inventaram agora e ao qual, nos garantem, a única alternativa é a barbárie), aquilo é de lavar a alma. Há isso e há muito mais. Só não há é espaço para comentar. Vou ter que concluir, até porque descobri que o Lanyi ainda me lê e ainda não gosta que eu me estenda. O Lanyi é assim como o Capitão Nascimento das minhas crônicas. Tem sempre a hora em que ele me manda pedir pra parar, e então eu peço e paro. Fecho com uma dúvida. Aceito colaborações. Fico me perguntando onde o tal do Padilha andava com a cabeça quando resolveu filmar um roteiro, no Brasil, em que há policiais honestos, bandidos cruéis, ridicularização de sociologia barata e bofetes na orelha de meia dúzia de adolescentes ignorantes e autoritários. Por enquanto, prefiro pensar que esse rapaz é louco. Só pode estar pedindo pra sair. Da patota. Nota do Editor: André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.
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