Fazia tempos Vera ensaiava contar o segredo a Antenor. E não passaria daquele fim de semana. Era manhã com todos os ingredientes de Finados, embora o mês de outubro ainda seguisse pleno. Uma chuva em flocos, soando a uma eternidade, como aquelas do 2 de novembro, morbidamente invariáveis. Vinham como para lustrar atmosferas seculares de saudade. Nesse chuvisco que remetia para longe, Vera embarcara, quando o telefone, súbito, tocou. Assombrou-se, sem compreender exatamente o por quê. Saltou, agarrou o aparelho. Mais ouviu que falou, e foi se recolhendo, em posição fetal ao choque da notícia. Morrera, Fabrício morrera. O coração deu de palpitar-lhe em desamparo. Amigo dela, amigo de Antenor, haviam jantado juntos noite passada. Cantina italiana, gastaram conversa com frivolidades. O parco conhecimento sobre vinho, política, o futuro deles e do planeta. Todos enumerando sonhos. A irmã do morto indicou lugar e horário, ela anotando ao papel quase desbotado em choro. Lágrimas quentes e salgadas lhe brotando assim, em dízimas periódicas. Precisava dizer logo ao marido sobre a fatalidade. Partilhar angústias. Clamou baixinho por ele, soluçando. E foi agora a vez de Antenor se pôr em sobressalto. Que cenário era aquele, de olhos copiosamente marejados?!? Repetiu, repetiu e repetiu, como não quisesse acreditar. Fabrício, que horas atrás confessara os planos de se mudar para uma morada no litoral, trabalhar menos, falar mais com os amigos, estava morto. Coração, confirmara a família. Partira dormindo. Chamado, não respondera, e fora encontrado com semblante lembrando passarinhos. Vera contava e desatava num desvão de dor despedaçado e incontornável. Ela buscou fôlego, amparo no peito de Antenor, e rendeu-se em seguida a um banho em que o que mais desejava era enxaguar a alma. E nunca mais sair dali. Porque lá fora estava o mundo. Misturaram-se a morte, a angústia de desnudar o tal segredo ao marido, e o melhor a fazer era colocar-se em negro por inteiro. Dos pés à cabeça. Feito fosse uma blindagem, ou ao menos a miragem dela. Ignorou maquiagem e perfume, porque os mortos dispensavam aqueles rituais. E já no caminho ao carro entrelaçou dedos aos de Antenor, trocou olhares de cumplicidade e compaixão mútua, como a dizer que jamais gostaria de perdê-lo. Recompôs-se, estancou o pranto por um instante, mirou longo o companheiro. A feição denunciava abatimento. Barba por fazer. Ficava assim sempre que se punha triste. Vera, então, balbuciou, jeito de quem não pretendesse ser ouvido: "Há uma coisa que preciso lhe contar". Seguiram-se segundos em que a sensação nítida era de ambos estarem sobre um lago congelado, e o gelo se partindo à volta. Ele estremeceu à simples menção da frase. Filmes, novelas e literatura bem traduziam o significado daquela senha. Apartou, curto, tentando desarmar os espíritos pelo tempo que pudesse: "Não hoje, não hoje". Vingou um silêncio de sublimação naquele momento. Os dois cabisbaixos, encaramujados. Haviam cruzado os jardins, adentrado o velório. Seguiram em direção ao amigo. A silhueta imitava de fato a de pequenos pássaros, como descrevera a irmã. Se recolheram ao fundo. Vera direcionou o rosto a Antenor e, sem tirar os óculos escuros, desembainhou o segredo: "Estou tendo um caso". Os lábios lhe tremiam. "Mas acabou, está morto". Ele encarou-a, a que respondesse se era realmente o que se desenhava. E era. Daí marchou rumo ao caixão, recolheu a rosa vermelha que lá depositara e saiu esmigalhando-a à palma da mão. Desdenhou espinhos e sangue, porque eram pouco diante do que vivia ali. Ou do que morria. Vera desandou pelas alamedas do cemitério, buscou distância de tudo. Se condenara a ficar só. A tempestade chegou e, num segundo, ela, duplamente viúva, era não mais que um ponto negro em meio ao temporal. Semimorta, sem saber ao certo se queria mesmo voltar ao mundo lá fora. Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia, onde publica às quartas-feiras.
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