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Crônicas
09/11/2007 - 19h07
Acendam as luzes para Barbosa
Eduardo Murta
 

Mãos grandes, negras, apartam uma ponta de choro naquele fim de manhã. Os olhos seguem grudados na tela da tevê. É, creiam, pleno 2007, um aparelho ainda em preto e branco. Lá estão o chuvisco e, volta e meia, as imagens virando um balé de distorções. Ele segue alheio a isso, porque o que deseja, no fundo, é tão-somente ter a confirmação da notícia.

Os pôsteres envelhecendo à parede dão a conta de que o futebol, em alguma medida, atravessara sua vida. E que ficara estendido ali, como fosse um animal em lenta decomposição. Era cenário triste. Xícaras por lavar, jornais empilhados, a antena marcada pelas digitais de mosquitos, um rádio sempre fora de sintonia. E a maldita janela, pedindo conserto fazia anos, batendo em jeito irritante. Embora ele sequer a notasse.

Está fixado é nos pronunciamentos televisivos. Cruza os dedos, torcendo. Reza baixinho. E vai explodir em segundos, logo que for anunciado o Brasil como sede da próxima Copa do Mundo. Louvado seja. Era chance de se reencontrar com seus demônios e dizer que não os queria mais morando na varanda. Tanto tempo depois, mas ainda crendo que era possível dar remendo àquela vida posta em cacos.

Tudo havia começado num 16 de julho de 1950. Maracanã. O Brasil, sem que a bola rolasse, declarado campeão diante de um Uruguai coadjuvante. Faltou combinar com a história. Faltou combinar com os jornais da época. Faltou combinar com o público. Porque eram milhares em contagem regressiva para o apito final do juiz. Era aquilo, julgavam, que os separava da celebração.

E este homem virou refém das circunstâncias. Não dormia, desde então, uma só noite sem que pensasse no imponderável. Viu as rugas se avizinharem, os netos se avolumarem, e aquele desejo caducando em seu coração. Conserto para que estava feito não havia, mas existia remédio para o porvir. Por isso, resistira, ainda que muitos considerassem que estava morto, fazia tempos.

Mais que isso: julgavam que morrera naquele outubro de 1950, junto ao sonho de muita gente. Não, não, não... Hibernara. E se enxergava agora diante de uma chance peculiar de redenção. Ver o Brasil erguer a taça e retalhar fantasmas em praça pública. Era preciso fazê-lo, como catarse, e se apresentaria para a missão. Buscou os paramentos no armário. Cheiravam a mofo, naftalina. E azar se tinham as bordas carcomidas.

Naquela tarde, no Maracanã, o porteiro contornou dificuldades com zelo diante do velhinho fantasiado de goleiro. Queria entrar de qualquer forma. Bradando que não faltaria ao time em campo. Os policiais, convocados, evitando dar-lhe rumo. Nutriam piedade. Daí, diretor, zelador, seguranças e até faxineiros baixaram na portaria, tomando a rota do alvoroço. O sujeito irredutível. A Seleção Brasileira precisava dele, e não se recolheria nessa hora.

A situação já beirava o nonsense, quando surgiu assim do nada um veterano entre os funcionários. Olhou acima, abaixo. Conferia, por Deus, conferia. Mas deveria estar longe de ser verdade. "É o senhor mesmo, Seu Barbosa?" Era. Reconhecido, ele marejou os olhos. Estendeu a mão, pedindo passagem. "Mas o senhor já não morreu?". Ele estremeceu.

E foi se desmanchando, se convertendo em pequenas bolhas de sabão. Nem deu tempo de dizer. Só tinha ido ali para tentar defender o chute do uruguaio Gighia, que calou o Maracanã. Dessem outra chance, seguro, evitaria aquele gol. E estaria livre para sonhar com outros sonhos que não o do homem que ficou ali olhando a rede, a bola, a bola, a rede... Até que todas as luzes se apagassem.


Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia, onde publica às quartas-feiras.

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