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Crônicas
14/11/2007 - 06h21
Anjos que choram
Silmara Torres Retti
 

Ninguém dava um pio na casa de Tonhão enquanto a fera não virasse a esquina, com sua panca de pitbull, arreganhando os dentes para a vizinhança apenas para impressionar. E tinha gente que achava uma graça tanta simpatia assim, nem sonhando que aquele pacato trabalhador fazia uma guerra de nervos do portão para dentro, rachando até o teto com seu terrorismo barato.

Barato para os outros, porque para Dona Nica e os meninos era uma tortura que não tinha preço.

Então eles esperavam quietinhos um momento certo para fazer a festa. Lucas e André ficavam espiando atrás do muro para dar o grito de liberdade:

- Vivaaaa, papai se foi!

E se fosse embora para sempre, tudo bem. Assim não precisariam esperar tanto tempo para ligar o rádio, assistir um desenho ou ficar jogando taco com os amiguinhos da rua. Ele poderia esquecer o caminho de volta e virar um homem de bem, daqueles que sentem AMOR, mas Tonhão não pensava desta forma. Não compreendia que a violência doméstica deixa marcas na pele da Alma.

Não pense você que é somente a pancadaria, porque a falta de liberdade de expressão amputa o crescimento da criança.

Depois que Tonhão batia o ponto na fábrica de sapatos, dentro da sua casa era só alegria. Dona Nica dançava com a vassoura, sentindo-se aliviada e muito feliz.

Ela fazia planos enquanto escolhia o feijão, querendo voltar a estudar. Lucas e André aproveitavam para brincar com a molecada e eram felizes até as sete horas da noite, pois quando o relógio da sala começava a ficar pesado, triste e com medo, eles percebiam que um outro tempo estava chegando; tempo de tristeza.

Sem que ninguém lhes falasse nada, desligavam a televisão, recolhiam os brinquedos e com um simples olhar esperavam o pai trancar o portão.

Silêncio. O peito do pai acelerava o compasso. E lá vinha Tonhão, como sempre, distribuindo bala para as crianças da rua.

Depois que colocava o cadeado no portão, se transformava em outra pessoa. Encarava a mobília da casa e a própria mulher como que se uma fosse continuação da outra. Nunca ele pensou naqueles meninos famintos de carinho, diálogo e direção. Crianças que enxergavam nele um caminho escuro; um espelho opaco. Muito tempo se passou até que aquele relógio da parede da sala ficou velho demais e não funcionava como antes. Numa noite exatamente no mesmo horário que costumava trancar o portão, resolveu caminhar pelo quintal, querendo que tudo fosse diferente. Talvez precisasse mudar o seu jeito... Ser um pouco mais humano; mais PAI. Então deixou todo ressentimento do lado de fora, o mau humor e a arrogância. Abriu os braços emocionado, chamando por um e por outro. Mas ninguém apareceu.

Nisso bateu os olhos no relógio da sala e viu que também estava atrasado com suas emoções. Chorou desesperado, pedindo que o tempo voltasse atrás, mas André e Lucas não estavam ali, pois já haviam crescido e caminhavam por estradas diferentes. Sei lá onde!

Tonhão estava só com seus pensamentos. Somente assim percebeu que nossas crianças querem colo agora, porque amanhã já é futuro e poderá ser tarde demais.

Enlaçou o retrato de cada um deles junto ao peito e pela primeira vez sentiu saudades. Muitas saudades e se pudesse desejaria começar tudo outra vez para sentir de perto a infância lhe sorrir em sinal de recomeço!


Nota do Editor: Silmara Torres Retti é escritora e mora em Ubatuba (SP). Mantém o site www.silmararetti.prosaeverso.net.
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