Não há assunto outro em Ribeirão das Covas que o delicado caso embalado a ingredientes novelescos: álcool, ciúme, sangue e paixão desmedida. Mirem-se na noite em que Zelão se emplastara em perfume novo, as tarefas de curral encerradas mais cedo, e descambara para o conjunto de casinhas que faziam fronteira com a escuridão. Era lá, mesa de sinuca carcomida ao centro, músicas escolhidas a ficha, que a angústia sufocante dos boleros ditava o ritmo. E as putas, em maiô, lustravam os sonhos de cabras machos. Seria uma saída trivial, como fazia há anos, mas havia um quê de ensandecedor naquela fragrância de estréia. O mascate a vendera como aroma dos deuses, na festa da padroeira. Ele pouco crera naquilo. E o ceticismo acabaria por envenenar suas convicções naquela sexta-feira. Rosto rude, cicatrizes maltratando-lhe o emblema, as mulheres agora faziam fila e se acotovelavam para um bailado de aconchego semipornográfico. Foi assim até o meio da madrugada, quando Poliana, decana do lugar, bradou que o homem era dela. Francisca, sete doses acima, bateu pé que não. Jurava que, nas mordiscadas de orelha, ouvira declarações puras de amor. E que Zelão não se alojaria em outras coxas que não as suas. Discursou, dedo em riste, e rodopiou com o tapa descompondo-lhe a face. As pontas das unhas tatuadas em arranhão. Já caiu com os dedos longos alcançando o vão da bota esquerda. E o punhal brilhou sob as luzes difusas do bordel. O vaqueiro se interpôs entre os pares de seios - ah, como eram avolumados... -, socou a botina com esporões no tablado e fez o silêncio ganhar a atmosfera. As caras pingando suor e a fumaça densa emprestando um clima noir à cena, ordenou obediência. Os dentes à beira de decepar o nariz das duas mulheres. Ambas retesas, em posição de duelo. Na piscada de Francisca, avançou-lhe às mãos para o desarme. Daí o grito, o sangue, o desespero. A lâmina adentrando, como se mergulhasse em manteiga. Caiu-lhe aos braços. Soluçava, num choro entrecortado. Tremia, imitando súplica de afogados. Hospital mais próximo a dezenas de quilômetros dali, Zelão fora saber, dia seguinte, que ela se salvara. Suspirou aliviado, amparando-se às barras da grade. O delegado se desculpando com sujeito tão pacato, mas era a lei. Que aguardasse por uns meses o despacho do juiz. Quatro ou seis, não cravaria ao certo. Semana findando, chegou encomenda. Um misto de surpresa e incômodo próprios à natureza inabalável de macho. Peão à quintessência. Era um vaso de flores. Distanciou-se, recolheu-se ao canto da cela. Noitinha, tomou coragem. Tocou as pétalas. Escandalosamente amarelas. Deixou o cheiro passear-lhe às narinas. Deu com o bilhete. Letra delicada. Palavra única: Saudade. Foi dormir pensando em qual das meninas do bordel estaria por trás daquilo. Viria depois um segundo ramo. Agora rosas vermelhas. Diabolicamente rubras. Pediu ao carcereiro que alojasse à esquerda, onde ninguém pudesse ver. Esperou a tarde cair e puxou-as para si. Namorou o buquê. Caçou sofregamente o envelope. Estava lá: Te quero. Deu-se, então, uma misteriosa sucessão de pequenos delitos na cidade. As lâmpadas da pracinha bodoqueadas, a caixa d’água infestada em estrume, o leite da escola desdobrado em coalhada. Por fim, a cachorrinha da primeira-dama raptada. Logo se chegou ao criminoso, com pistas que pareciam deliberadamente querer denunciá-lo. O insuspeito Alípio, verdureiro-mor do lugarejo. Não ofereceu resistência. À mesa do café, sugeria já esperar pelos policiais. Sorriu ao vê-los. Pediu apenas que juntasse algumas mudas de roupa. Escolheu as de festa. E cruzou o gradeado da cadeia feito penetrasse um salão de danças. Quase flutuando. Encarou Zelão, sem desviar o olhar. E estendeu-lhe um jasmim em botão. Fresco ainda. O vaqueiro se retraiu, deu de ombros. Estranhou, rejeitou. E aninhou-se ao fundo, como para dizer que um abismo os separava. Mas que aguardasse pela noite... Alípio pondo fé no perfume comprado em mascate. Arrematado sob a promessa de emprestar-lhe aroma dos deuses. Afogou-se naqueles odores. Sentiu a respiração do companheiro de xadrez acelerar-se em compasso de descontrole. E o restante da história, por honra ao peão, manteria em segredo. Mas carrega até hoje aquele gosto de curral em sua boca. Amor toscamente perfumado. Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia, onde publica às quartas-feiras.
|