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Crônicas
19/11/2007 - 12h00
Coisas que ninguém mais fala
André Falavigna
 

Há uma série de palavras que já não se usam mais, por diversos motivos. Algumas saíram de moda e não se as utiliza mais porque, para falar a verdade, elas eram só isso mesmo: moda. Outras foram substituídas para atender a este ou aquele novíssimo vocabulário corporativo. Mais algumas caíram em desgraça por conta de certa sonoridade que, aos ouvidos cada dia mais infantilizados de nossas classes cultas, soava antiquada ou pouco profissional. Muitas foram substituídas por seus correspondentes estrangeiros, algumas vezes com vantagem, outras sem nenhum fundamento. Há, para o horror da humanidade civilizada, a onda de correção política, a mais deletéria comedora de palavras da História. Cada caso foi um caso. Cada um deles atingiu em cheio toda uma maneira de descrever o mundo. Ficamos sem palavras para dizer montes de coisas que ainda ocorrem em torno de nós. Tenho saudade de todos esses vocábulos; mais de alguns e menos de outros. A eles.

O Plano Real deve ter dado sua contribuição, mas antes dele ninguém já mais reclamava contra a carestia. A carestia era um problema nacional, vivia nas páginas dos jornalões, nos telejornais mais importantes, nos mais sérios programas de rádio e nas bocas de todas as donas-de-casa que, aliás, preenchiam os cadastros do o que quer que fosse informando que eram "do lar". Agora, acabou. Quem vê, pensa que não há mais carestia. E ela por aí, campeando como uma menina loira e nua nas plantações de trigo. Não sei de onde tirei essa. Que coisa.

Hoje em dia, não há mais mulheres em estado interessante, as meninas não ficam mais de chico e incomodada ficava a sua avó. E, quando a sua avó sente aquelas dores crônicas no ciático, poucos pensam em recorrer ao estupendo Emplastro Salompas. Mesmo o plural que, sobretudo em São Paulo, sempre foi valentemente ignorado, começa a entrar em uso e atirar ao limbo o charme irresistível de se ir à padaria para se comprar "dez pão". Desde que me casei, estou tentando convencer a Jovem Esposa a me receber, todos os dias, preparada para meu escalda-pé. Salmoura, essas coisas. Ela reluta. Mas não vou desistir.

Talvez porque estejamos tão vinculados à tecnologia digital, tenhamos nos esquecido da importância das molas-propulsoras. Há alguns anos, ninguém imaginaria dar-se ao trabalho de fazer qualquer coisa sem uma boa mola-propulsora. Até as equipes de futebol tinham as suas próprias molas-propulsoras, que é a coisa mais gostosa de falar. Escandam comigo: mo-la pro-pul-so-ra. É uma delícia. E tenho certeza de que os dentes ficavam muito mais limpos no tempo em que ainda se usava o dentifrício. Parece-me mais higiênico do que qualquer pasta ordinária. Se seus dentes não estiverem limpos de verdade, você sequer consegue falar dentifrício sem constrangimento.

Eu ia ao colégio de trólebus. Tomava "O Elétrico". No inverno, como sentia muito frio nas pernas, vestia minhocão. As crianças de hoje, se você sugerir-lhes que utilizem o minhocão, elas simplesmente ejaculam na sua cara.

Onde foram parar as situações em que tínhamos que pensar uma luxação? Não, não se tratava de refletir acerca da dor no contexto da luta de classes. Bastava fazer um curativo, enfaixar, imobilizar e pronto: seu tornozelo, por exemplo, estaria perfeitamente pensado.

Os funcionários pés-de-boi tornaram-se todos colaboradores pró-ativos. Os braços-curtos agora são reativos (o que denota bem a picaretagem da coisa: os malandrinhos deveriam ser todos pró-passivos, não é mesmo?). Os chefes viraram líderes, e os departamentos, times. Ninguém mais trabalha numa seção. No final do mês, esqueça o salário: agora eles te remuneram. Outra coisa: se você estiver com os intestinos constipados, esqueça o Leite de Magnésia Philips. Ninguém mais recomenda. Ralou-se? Mertiolato, nem pensar. Mercúrio Cromo, acho até que proibiram.

Aleijão. Os aleijões não existem mais. Foram banidos. Agora temos aí uma situação curiosa. O camarada que não tem a perna direita, por exemplo. Não se admitindo que fosse aleijão, transferiram-no para a seção de deficientes físicos. Bom, os deficientes físicos, como não poderia deixar de ser, começaram a ser tratados como aleijões. Eliminou-se então essa turma e passou-se a tratar-se somente com portadores de deficiência física. Chegamos assim a essa maravilhosa situação em que o sujeito porta justamente aquilo que lhe falta. Se perco a perna direita, não é que passo à condição de aleijado porque não tenho mais minha perna: é que agora sou portador da perna que perdi. Há realmente quem leve esse negócio a sério.

Os surdos e mudos também se foram. Convivi com muitos e nunca vi um só se ofender com essa designação que, para falar a verdade, só é capaz de magoar ouvidos muito delicados mesmo. Um amigo meu, certa vez, foi a um evento qualquer onde se reuniram muitos surdos e muitos parentes de surdos. Em dado momento, foi necessário chamar a atenção dos ouvintes para qualquer coisa que se fez necessária ali. O responsável sacou o microfone e disse assim: "Os parentes dos surdos, por favor, aproximem-se". E eles se aproximaram, oras. Os cegos, que pelo menos podiam ouvir o nome das coisas pelo nome, também foram convertidos em portadores de qualquer coisa que não lhes diz respeito.

Mas o melhor vem agora.

Há aí esse desconforto todo para se dizer se Beltrano ou Sicrano é preto ou negro (supondo-se que não caiamos naquela esparrela racista que virou moda). Antigamente, dependendo do lugar, era mais ou menos respeitoso utilizar um ou outro termo. Agora, há sempre alguém para se ofender independentemente do regionalismo fixado pela tradição, filiando as palavras a alguma corrente política. Isso é potencialmente mais engraçado do que parece. Vejam como.

A exemplo do que já ocorreu em outros países, por aqui vão querer substituir as duas palavras, preto e negro, por duas outras acopladas numa só: afro-descendente. Essa medida é fantástica, porque transfere o eixo da palavra da cor da pele (que, aliás, é de inúmeros tons de marrom, nos pretos, e de bege, nos brancos) para a raça, seja lá o que isso possa vir a ser, e, pior ainda, para a ascendência do elemento. Muitos dirão, e com razão: ora, mas e se o camarada for mestiço (o popular mulato), essa porcaria aí não vai querer dizer nada. É verdade: haverá multidões de luso-descendentes pretos, negros, mulatos e, por último mas não somente, afro-descentes. Aliás, vai ser assim com a imensa maioria dos... afro-descentes, inclusive com os brancos. Pode parecer confuso, só que isso é o de menos. O de mais é que, já que posso me referir a quem quer que seja segundo a sua ascendência, posso muito bem fazer o mesmo a qualquer figura segundo a sua descendência. Isso implica dizer que seria mais coerente referir-se aos africanos não como negros, pretos ou mesmo africanos, mas como... américo-ascendentes.

Eu mesmo, cuja ascendência é italiana, serei afro-descendente (ou alguém acredita que os mouros passaram, como direi?; em branco pelo sul da Itália?), euro-descendente, américo-ascendente (basta ter filhos) e, quiçá, afro-africano, américo-ameríndio ou até euro-europeu. Conforme se percebe com facilidade, já não sei de mais quase nada de nada. Só para o que não há dúvida é que, pelo menos, há ainda uma expressão para definir o tipo de gente que inventou essa porra toda.

Filha da puta ainda se usa, não é mesmo?


Nota do Editor: André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.

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