Difícil imaginar algo mais didático e informativo sobre as mazelas da política e da economia brasileira do que a saga percorrida pela tal CPMF com todas as análises e discussões que compõem o entorno desse assunto. Embora sejam fatos bastante conhecidos, recapitulemos muito rapidamente: - O Deputado Marcos Cintra apareceu com a idéia do “Imposto Único” sob a forma de incidência nas movimentações bancárias; mas a proposta nunca foi levada inteiramente a sério pelo meio político e pelos economistas. Muitas críticas, algumas pesadas, e alguns elogios às vantagens de simplificação e modernização do método tributário. - Anos depois, o Ministro Adib Jatene, com todo o peso de alguém que zelava por muitos corações preciosos da República, ressuscitou (ironia fina!) a idéia no seu aspecto de viabilidade, propondo o uso para salvar o orçamento público de saúde. A proposta, vendida de porta em porta foi de 0,2 por cento sobre os cheques emitidos com arrecadação vinculada exclusivamente à finalidade prevista e por tempo limitado. Mesmo assim, nas áreas econômicas e especializadas a resistência inicial foi feroz: tratava-se de um péssimo expediente; impostos vinculados são indesejáveis; seus efeitos econômicos seriam nocivos sobre a cadeia produtiva e sobre o fluxo financeiro etc., etc. - Graças, principalmente, ao prestígio pessoal do Dr. Jatene e ao fato de saúde ser prioridade retórica de todo político, o novo imposto acabou sendo aprovado com data certa para acabar. O dinheiro vinculado entrou por uma porta e o desvinculado saiu pela outra, deixando o setor saúde mais ou menos como já estava, embora tanto o governo FHC como o desgoverno Lulla jurem que não. - O Dr. Jatene descobriu que os políticos e burocratas têm o coração mais duro do que ele imaginava e saiu do campo, deixando essa semente perversa para a posteridade, porque não devemos nos esquecer de uma das luminosas lições do Sr. Reagan: “Todo imposto cria a sua própria despesa”. De 0,2 fomos para 0,38 e de patinho feio do sistema tributário, aceito com o nariz torcido pelos burocratas da área econômica, a coisa tornou-se a “namoradinha” da receita. Depois de forçar os bancos a fornecerem a identificação dos recolhimentos para se prestar à fiscalização sem qualquer interveniência judicial, sigilo bancário passou a ser uma quimera, uma idéia sem qualquer sentido entre nós. A população em geral ignora a gravidade desse fato, mas lembro-me de um editorial do Estadão chamando a atenção de que, pelo menos o Sr. Fernando Henrique não podia alegar inocência, pois tinha cultura e compreensão suficiente para entender o quanto isso eliminava qualquer privacidade do cidadão brasileiro. Os motivos alegados para fazê-lo, como sempre, são muito nobres: combater a fraude, a lavagem de dinheiro, o crime organizado, todas essas coisas que vão muito bem, obrigado. Mas conheço gente que teve que comparecer à receita para a missão impossível de explicar detalhes da sua contabilidade pessoal, misturada com dinheiro de outros familiares. - Hoje, uma regra de três demonstra que os tais 39 bilhões representam a incidência de 0,38 por cento sobre uma base equivalente a quase 5 PIBs nacionais. Ou seja, todos pagamos muitos percentuais de 0,38 acumulados sobre tudo. Mesada para o filho paga CPMF; devolução de pequenos empréstimos para o compadre também. Fez um pagamento errado, pagou CPMF e quando o outro devolver paga também. Melhor de tudo: uma DARF para pagar imposto paga CPMF, ou seja, imposto para pagar imposto, seja ele qual for: PIS, ISS, Cofins, Semfins ou qualquer outro dos mais de cinqüenta existentes. Agora vejamos os argumentos do governo para prorrogar a dita cuja. O primeiro é, aparentemente, tão espontâneo quanto falso: não se pode cortar todo esse dinheiro de repente. Ora, há quantos anos já se conhecia a data em que isso ia acabar? Faz poucas semanas o tagarela máximo discursava dizendo que o país nunca esteve tão bem, que a maior arrecadação verificada era mero sinal de crescimento econômico, prometia recursos para tudo e para todos e agora vem chorar miséria? PAC para isto, PAC para aquilo, já que a sigla se tornou uma espécie de abracadabra que resolve simbolicamente todos os problemas. Por que, agora, os seus ilustres representantes aparecem ameaçando com falta de dinheiro para a saúde, para o “esmolário” oficial, para o “social”, apesar de todas as projeções de arrecadação mostrarem o dinheiro jorrando para os cofres do governo? Outra frase renitente é: “o país não pode abrir mão de 40 bilhões”. Aí eu até concordo. E concordo tanto que, no que me diz respeito, gostaria de ficar com a minha parte. Se o governo não embolsar essa bufunfa, ela vai ficar no país do mesmo jeito, só que no bolso das pessoas e nos orçamentos das famílias que, certamente, farão muito melhor uso dela do que os perdulários do planalto central. Ou, por acaso, os 40 bilhões serão enviados ao exterior? Esse argumento, que chega a sensibilizar tanta gente supostamente esperta, parte do pressuposto equivocado, mas tipicamente nosso, de que a economia do país acontece no Estado e não na sociedade. O automatismo mental com que, no Brasil, se identifica o Estado com a Nação é uma das cruzes que temos que carregar. Dinheiro que permanece na área de troca entre agentes econômicos privados, entenda-se pessoas físicas e jurídicas, só pode fazer bem ao país. O que faz mal é dar vida fácil ao governo para gastar. Se em vez de 40 fossem 80 bilhões a choradeira seria a mesma, afinal que país abriria mão de oitenta bilhões? Só se fosse para perdoar dívida de alguma ditadura africana ou de algum governo vigarista sabe Deus aonde. O pior de todos os argumentos pela manutenção da CPMF, porque além de falso é conscientemente mentiroso, é o que vem acompanhado da promessa de desonerar os mais pobres, isentando os salários menores. É demagógico e pressupõe que somos todos idiotas. Seja pobre, seja rico, ninguém paga CPMF principalmente sobre o salário. Seja pobre, seja rico, quando o cidadão dá uma mordida num sanduíche de queijo, apenas variando, provavelmente, a qualidade do queijo, ele está destroçando um objeto que inclui CPMF paga na compra do trigo, na moagem, no empacotamento e transporte da farinha, no sal e na água, na energia que move o equipamento, no salário do padeiro, no leite, no coalho, no salário do queijeiro, no transporte mais uma vez, nos impostos pagos, na embalagem, na eletricidade da padaria e mais quantos pagamentos intermediários e paralelos houver. Tudo, até a esmola dada na porta da igreja, pagou CPMF ao sair do banco para o bolso do benfeitor. Chega a ser um insulto achar que alguém pare dez segundos para pensar e acredite que os poucos reais perdoados no seu salário o estão isentando de CPMF. Governos - e este mais que todos - reagem aos tributos como um viciado reage às drogas. Promete parar, mas não agüenta e não há como saciá-lo por muito tempo. Mal passa o efeito de uma dose fica ansioso por outra e se não a consegue por bem tenta conseguir por mal, desde que haja oportunidade. Se essa aberração tributária não for interrompida agora, como está previsto desde que foi prorrogada pela última vez, quando será? A esperança de que os políticos da oposição se mantenham firmes é tênue mas não é nula. Os petistas sempre apostam na falta de caráter dos oponentes e têm se dado bem. Portanto, apelar para o lado virtuoso dos opositores talvez não seja realista, mas se pensarem com alguma clareza, apesar das juras recentes do apedeuta, saberão que 120 bilhões em três anos podem não resolver os problemas da saúde, até porque não irão para lá, mas viabilizarão o “saco de bondades” com que essa gente pretende pavimentar a estrada para um terceiro mandato ou, se não tiver jeito mesmo, algum plano B meio assemelhado. Não é preciso ter artes de cigana ou ser um gênio político para saber que tipo de plano B será: sai Lulla já sonhando com a volta, tagarelando sobre seu espírito democrático, mas a praga de gafanhotos instalada no governo fica; as Ongs de estimação e os cangaceiros dos “movimentos sociais” continuam mamando avidamente. Quem entrar ocupa a cadeira, mas não governa sem os órgãos públicos todos aparelhados, não faz qualquer devassa nem fecha a torneirinha para o esquema de parasitismo. Quem se habilita? Nota do Editor: João de Oliveira Nemo é sociólogo e consultor de empresas em desenvolvimento gerencial.
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