- Senta. - Não, obrigado. Trabalho sentado o dia inteiro e agora acho melhor ficar assim - esticando as pernas - entende? - Entendo. - Mas e você - o que tem feito? - Eu estou escrevendo um livro. - Sério? - Sim. - E do que fala esse seu livro? - Fala de amor. - Sério? - Sim. - Poxa, que legal. Você sempre quis ser escritor, né? - Sempre. Flávio e Felipe eram amigos desde os cinco anos de idade. Flávio sempre se lembrava do dia que viu a mudança da família de Felipe chegando num caminhão e parando na casa vizinha à dele. Havia de tudo naquele caminhão de mudanças. Foi a primeira vez que Flávio viu uma tartaruga. Também foi a primeira vez que viu um papagaio. E havia, ainda, cachorro, gato, tio, avô e avó. A família de Felipe era grande. E o garoto chegava, junto com a mudança, carregando debaixo do braço uma bola de couro novinha. Também foi a primeira vez que Flávio viu uma bola de couro. Aquelas duas crianças se tornariam grandes amigos a partir daquele momento. - Tem visto a Carla? - Nunca mais. Acho que ela foi morar em outro Estado. Ela sempre falava em morar no Nordeste, né? - É. - Mas me conta: esse livro já tem quantas páginas? - Muitas. Na verdade eu já o terminei. - Sério? - Sim. - Poxa. Não sabia. Quer dizer que você já escreveu tudo? Poxa. Nem sei o que dizer. - Tudo ainda não, Felipe. Falta o título. - Título? - É. - Poxa Flávio, mas o título é o mais fácil. - Você já escreveu algum livro, Felipe? - Não. Claro que não. Mas acho que o título é fácil. Poxa, Flávio, quem escreve um livro escreve um título, né? - É? Não sei. Esse é o primeiro livro que escrevo. Flávio estava internado fazia quase 15 anos. Tudo havia começado numa tarde de domingo de 1993. Depois de almoçar com a família, Flávio começou a falar algumas coisas desconexas. No princípio seus familiares acharam que era uma brincadeira. Flávio sempre teve um humor ácido. Mas não demorou muito e todos perceberam que algo estava errado. Flávio passou a olhar mais fixamente para seus interlocutores e a falar mais pausadamente que de costume, e com raciocínios nem sempre muito lógicos. O jovem de 17 anos, aspirante a escritor, repentinamente, havia enlouquecido. - Bonita sua camisa. - Você gostou? Foi a Suzana que me deu. Ela comprou uma para mim e outra para o Thiaguinho. - Thiaguinho? - É. Meu filho com a Suzana, Flávio. Poxa, eu já lhe falei dele das outras vezes que vim aqui. - Falou? Não me lembro. - Falei. Ele já está com 5 anos. Ele é demais. Eu sou o pai mais feliz do mundo. - Eu nunca tive um filho. - Um dia você vai ter, Flávio. Um dia você vai ter. - Que nome você acha que eu devo dar? - Para seu filho? - Não. Para o meu livro, Felipe. - Ah, tá. Não sei, Flávio. Você disse que ele fala sobre amor, né? - É. - Sei lá. Você sabe que eu nunca fui bom nessas coisas, né? - No amor? - Não. Em títulos, Flávio. O escritor da escola sempre foi você, lembra? - É. É mesmo, né? Felipe visitava Flávio uma vez a cada seis meses, pelo menos. Não era uma tarefa fácil para Felipe sair do trabalho e ir para um sanatório visitar seu grande amigo. Ele ia pelos velhos tempos. Mas era complicado encontrar Flávio naquela situação - sempre tão alheio a tudo e vivendo num mundo particular. Felipe queria que Deus mudasse tudo e que aquela tarde de domingo de 1993 nunca tivesse existido. Mas Deus nunca mudou nada e, também, nunca ninguém descobriu os motivos da loucura de Flávio. Nem sua família, nem a namorada Carla, nem os amigos e nem os médicos. Tudo se tornou um mistério. O fato é que aquele jovem alegre e que queria ser escritor nunca mais foi visto escrevendo uma linha sequer. - Oi, Pedro. - Oi, Felipe. Visitando o Flavião? - É. Vim dar um abraço no meu camarada. - Valeu, cara. A gente que cuida dele todo dia sabe o quanto você gosta do cara. Amizade é isso, viu? Acho bonito pra caramba. - Ele disse do livro de novo, Pedro. Ele tem escrito alguma coisa? - Tem nada, Felipe. Eu nunca vi ele escrever uma palavra sequer. - Eu imaginei. E ele vive dizendo que só falta o título, né? - É. Ele diz que o livro está pronto, mas está sem título. Sabe o que eu acho? O livro está dentro da cabeça dele, cara. Está tudo lá. Bagunçado. Misturado. Mas está tudo lá. Nesse mundo não existe gente louca - só um pouco confusa, você está me entendendo? - É. Deve ser isso mesmo, Pedro. Eu vou indo. Cuida bem do meu amigo, aí. - Pode deixar. O Pedrão resolve tudo por aqui. Vai com Deus, Felipe. Nota do autor: no último 15 de novembro, quinta-feira, por volta das 23h00, o corpo de Flávio foi encontrado caído no banheiro de seu quarto, no Sanatório Reflexão e Paz. A morte repentina e sem causas aparentes do jovem de 30 anos surpreendeu a médicos e enfermeiro da clínica. No entanto, a maior surpresa mesmo foi encontrar, ao lado de seu corpo, um calhamaço de 350 páginas, escritas a mão, e trazendo na primeira página o título: A LOUCURA NUNCA ME IMPEDIU DE AMAR. Nota do Editor: Fábio de Lima é jornalista e escritor, ou "contador de histórias", como prefere ser chamado. Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO, com publicação (ainda!) em data incerta.
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