Mirem no segundo homem à esquerda, se aproximando da porta em néon. Leva tremor disfarçado às mãos e ar de que, por uma razão qualquer, não deveria estar ali. Mas vai entrar. Se mistura aos outros, o que cheira a inglês, pela fleuma; o que soa latino, pelo assumido desleixo das roupas; a que, pelo perfume, lhe adentra mais como tentação que outros significados. Vai fechar os olhos àquilo, porque elegera navegar à margem dos holofotes, incógnito. Alcança o terceiro degrau, se curva ao funcionário que lhe gira a maçaneta, e num segundo está dentro. Se esconde nas dobras da atmosfera pesada, a penumbra, os cigarros desenhando cenários ao ar. Observa os movimentos, o caça-níqueis à esquerda, o carteado ao centro, a mesa de dados ao fundo. É para lá que se dirige. Soma pressentimentos para lá de otimistas, embalados em vinho regional fino. Pediria o das abadias do Norte, frutados no buquê, aveludados no paladar. Deixou que o dado mornasse à mão esquerda (era a da sorte) e lançou. Fiasco. Uma vez mais. Fracasso. Sentiu o dinheiro escapando-lhe pelos bolsos, empapando em calor as pernas, como urina de bêbados. Era sensação, não mais que isso, e prosseguiu. Nem o ritual de beijar o crucifixo dourado, raridade do século XVIII com rubis cravejados, lhe bafejava resultados animadores. Uma Ave Maria, um Padre Nosso mudariam em nada o curso de azar. Tentou em seguida as roletas. Os números já embaralhando a consciência. Foi se soltando, faturou umas migalhas, e até perdeu o receio de que fosse reconhecido. Baixara o capuz da jaqueta, a calva agora sobressaindo. Era possível vislumbrar seus olhos. Carregavam um verde intenso. As órbitas se apequenando revelavam que já passara da décima dose. Dinheiro empatado, talvez momento ideal de deixar o lugar. Se aquietar. Não fosse o veneno desafiando. Devorando-lhe as entranhas como um vulcão. Vivera aquele sentimento antes, tinha certeza. Notou o homem sozinho ao canto, a luz suspensa imprimindo-lhe silhuetas múltiplas ao rosto. Foi chamado pelo nome, baixinho, repetidamente: Tchekhov, Tchekhov... Estranhou, mas estivera diante de tantas pessoas, que soou-lhe familiar. Pediu que se sentasse, que dividiria as cartas, que estava seguro de que viria. Deu de ombros. Conversa de tonto, ao certo. Puxou a cadeira, colocou-se face a face com o adversário. Pensou já conhecê-lo. O risco de sobrancelha, o nariz talhado como por artesãos, e o pedigree daquele sorriso. Mas jogassem, porque tinha bons presságios. E apostariam exatamente o quê, afinal? Retraiu-se à resposta. Um frio serpenteando-lhe a espinha: R$ 1 milhão e ainda a alma do perdedor. Tomou por brincadeira. Foi adiante. Puxou carta por carta. Por estranho, jamais tivera tanta fé num desfecho feliz. Houvesse sido combinado, não cairia perfeito assim: dois pares de ases, uma trinca de reis. Imbatível. Se apresentou à banca. O oponente suspirou, apenas, conformado. Estendeu-lhe a mão. Aperto firme. Chamava-se Lu. Dono de gerações de cassinos. Honraria a dívida. Tchekhov, abobalhado ainda, descartou festa, pediu discrição. E saiu de lá como entrou, em concha, o capuz assentado à cabeça. De volta a casa, a dinheirada sobre a mesa, ficou fitando as notas. Custando a crer. Daria destino justo a elas, porque soava a trapaça do destino um frade franciscano se converter em milionário. Listou as entidades que receberiam a doação completa. Pôs os joelhos nus, postou-se diante do oratório. Se combatera o bom combate, rogava o perdão. Se sentiu aliviado. Já podia dormir. Mas ao sono, aquele rosto lhe interrompe, súbito. Vê Lu, em todas as suas nuances. Assustador, trazendo-lhe a alma na bandeja, balbuciando seu nome completo. O pedigree do sorriso, sarcástico, face de cão. Venenosa. Vislumbrou saídas. Daria cartada fechando o jogo, sonâmbulo, mastigando cápsulas de cianureto. Maldito, bendito ás na manga. Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia, onde publica às quartas-feiras.
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