Nos anos 1999 e 2000 minha mulher e eu passamos boa parte do tempo na Inglaterra, em Londres e Cambridge, em viagem de estudos. Na magnífica cidade por onde serpenteia o rio Cam, terra que abrigou a maior cabeça do segundo milênio, Isaac Newton, moramos um semestre. Lá aprendi muito, é impossível viver num lugar onde está situado o "leading edge" do conhecimento mundial e retornar para este deserto de idéias o mesmo. Somos mutantes, embora para a maioria dos brasileiros a vida transcorra na imobilidade quase medieval de uma sociedade de castas eternas. Mas voltando à terra dos remadores, em certa época minha mulher morou num college, o Lucy Cavendish, especializado em abrigar moças. Perto dele havia um pub, aonde íamos nos fins de tarde ler os jornais e tomar cerveja. Nessa época os jornais brasileiros diziam que o Reino Unido estava com problemas sérios, vivendo uma terrível crise. Os cadernos de economia em particular, sempre noticiando o que não interessa e fugindo da objetividade. A faxineira do college acabou amiga de Susan, minha mulher, por causa de um gato, muito parecido com um que tivemos, porém com o dobro do tamanho. Os gatos ingleses são enormes, idênticos ao gato de "Alice no país das maravilhas". Nas manhãs ensolaradas de fim de inverno em que o Sol aparece, mas não esquenta, resfriado pelo competitivo vento que sopra do Mar do Norte, o gato "caçava" os ágeis esquilos que corriam pelos gramado do college. Nunca conseguia, cansado e frustrado procurava abrigo ao lado da faxineira. Deitava então de barriga para cima para que ela coçasse. Observando esses momentos através da ampla janela da cozinha, Susan e eu começamos a prestar atenção na faxineira. Era uma mulher forte, robusta, na casa dos quarenta anos. Chegava de manhã dirigindo um Ford K novinho. Mudava as roupas, vestindo outras apropriadas para a tarefa pesada da faxina. Agia sem pressa, fazia o melhor que podia. No fim da tarde nós a encontrávamos no pub, aonde ia com as colegas da cozinha. Ficavam em uma mesa próxima à nossa habitual. O pub estava sempre cheio de estudantes que se reuniam em diversas tribos ruidosas, nada diferindo dos estudantes de qualquer país. Jovens de todas as partes do mundo, muitos asiáticos e indianos, estes com a cor cinzenta característica, alguns de turbante. Uma jovem negra, filha de pai nigeriano e mãe inglesa, cuja combinação resultou numa mulata do tipo brasileira, com todos os atributos destas e com a simpatia característica, também costumava sentar-se próxima. A diferença entre o olhar brasileiro e a realidade inglesa é que aquela jovem era uma das melhores cirurgiãs de tórax do Reino Unido. Parecia uma mulata do Sargentelli, papel que provavelmente lhe estaria reservado no Brasil, de tradição escravista e racista. Em frente às empregadas costumava sentar-se um homem cuja mesa parecia ser propriedade privada. Passava horas entretido, trabalhando num computador portátil e fumando cigarros turcos, um atrás do outro. O dono do pub me disse ser ele emérito professor e membro afastado da família real. Tinha, por duas vezes, sido indicado para o prêmio Nobel. Era assim a vida na Inglaterra, faxineiras, médicos e membros da nobreza, candidatos ao prêmio Nobel, freqüentando o mesmo pub. É obvio que isso acontecia no "happy hour", era momentâneo e fugaz. Os grupos não tinham intersecção. Nem poderiam ter, faxineiras e professores são líquidos imiscíveis, embora lá sejam igualmente respeitados. Aliás, na Inglaterra todos os cidadãos têm direito a viver com dignidade. No outro dia encontrávamos a faxineira, sempre de cabeça erguida e confiante. Depois dessa experiência, ao ver os jornais dizendo que a economia do Brasil vai bem, não consigo deixar de pensar. Quem eles querem enganar? Talvez daqui há trezentos anos as coisas mudem e os trabalhadores então se sintam gente. Por enquanto tudo continua como sempre esteve, sem sinais de mudanças.
Nota do Editor: Sidney Borges é jornalista e trabalhou na Rede Globo, Rede Record, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo (Suplemento Marinha Mercante) Revista Voar, Revista Ícaro etc. Atualmente colabora com: O Guaruçá, Correio do Litoral, Observatório da Imprensa e Caros Amigos (sites); Lojas Murray, Sidney Borges e Ubatuba Víbora (blogs).
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