Uma voz me chama à janela do carro. A essas vozes, no geral, a gente nem olha. São sempre pedidos, oferecimentos do que a gente não quer comprar, morangos, bonés, chaveiros, contribuições para o combate ao câncer, cajus sem cheiro, esmolas para igrejas, quinquilharias. Mas dessa vez a voz possui outro significado. Ela me chama num tom que o preconceito repugna. E um preconceito tal que ruboriza escrevê-lo, em razão da mesquinhez da repulsa: a rejeição à voz feminina que sai de uma garganta masculina. É uma voz que ondula, oscila, fêmea na freqüência, mas sabemos, sem vê-la, que não vem de mulher. Nela há um quê de exceção, ou de artifício. No entanto, a esse acúmulo de repulsas e de preconceitos que não se expressam abertamente, apesar disso, levanto os olhos. O dono da voz é um jovem de cara lisa e limpa, sem adornos, pêlos ou máscara. Tem os olhos grandes, arregalados. Eu conheço esses olhos. Em rostos distintos, em épocas diversas, de tanto vê-los eu aprendi a conhecer esses olhos. Tomam de assalto a gente. Um dia já me meteram medo. Olhos do meu pai, grados, prepotentes, brutais. Estes que me chegam pela janela do carro, no breve instante em que o sinal não abre, são outros olhos: de medo, de espanto, de fome. Olhos tão conhecidos que desconfio que em algum ponto da vida eu possuí esses olhos. A expressão deles, em vez de severa e implacável como a do meu pai, é suave, suplicante: - Senhor, uma ajuda para o teatro. Então escuto a voz, então percebo os olhos, então a força do que a voz fala supera, vence e destrói o preconceito. "Uma ajuda para o teatro". Sem exclamação, sem que seja preciso dizer, "Homem, se tem a minha humanidade, veja quantos centavos merece o teatro". Esse pedido sai dos olhos e supera a voz. Ele me remete a outros artistas, me leva a outras artes. Tudo muito unido, rápido, sem que se detenha em compartimentos separados, unificados neste pedido, tornados no corpo destes olhos e desta voz. Recordo então um artista no bar Marola, em Olinda, que pedia dinheiro como pagamento para escrever nomes de clientes em grãos de arroz. Como são eloqüentes os artistas! Como sabem simbolizar com a precisão da flecha que atinge o olho da mosca. Para comer, esse artista no Marola escrevia minúsculo em grãozinhos de arroz. Era um jovem pálido, e é interessante como o vejo vestido em túnica grega a desenhar a mediocridade de toda a gente em grãos miudinhos. Melhor que a sua arte era o orgulho da sua arte. Enquanto percorria as mesas era insultado. Dele zombavam os miseráveis com dinheiro na carteira. Mas ele, ele e seu orgulho, albatroz ferido, cantava baixinho: "Ponta de areia, ponto final, da Bahia a Minas, estrada natural. Que ligava Minas ao porto, ao mar, caminho de ferro, andar, andar". Os clientes ouviam e, cascas grossas, carteiras cheias, a dignidade do homem não os atravessava. Então eu, este senhor que pela aparência exterior julgam ser um homem decente, então eu, abalado pela eloqüência do pedido na janela do carro, movo-me. Antes que o sinal fique verde, sem nenhuma vergonha, sem-vergonha, desavergonhadamente, jogo à mão do jovem 4 moedas de 10 centavos. Uma delas cai-lhe fora da mão. O jovem ator se curva para apanhá-la. O sinal abre e os carros, impacientes, voam. Quase o arrastam pela cabeça. Para sorte minha os carros não o matam. Curvado, à procura da moeda que caiu, ele me deixa a última impressão dos atores que agradecem os aplausos recebidos. Nota do Editor: Urariano Mota é escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance "Os Corações Futuristas", cuja paisagem é a ditadura Médici. Tem inédito "O Caso Dom Vital", uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
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