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Opinião
18/12/2007 - 22h14
Filme político da década
Ipojuca Pontes - MSM
 

A crítica cinematográfica atuante no Brasil é, antes de tudo, intelectualmente indigente. De ordinário, o sujeito que escreve sobre cinema, aqui ou mesmo lá fora, sobrevive num universo vicioso, acompanhando dia e noite uma enxurrada de filmes cretinos, lançados à luz de releases apressados ou convenientes às empresas distribuidoras, todos eles azeitados numa baba de quiabo publicitária de precária digestão. A maioria dos releases traz sinopses, fichas técnicas e opiniões laudatórias, com destaque para alguma premiação alcançada pelo filme.

Alguns escribas se debruçam sobre esse tipo de material lêem em sites especializados a opinião dos críticos estrangeiros, outros colecionam livros sobre cineastas, atores e gêneros cinematográficos. Outros ainda, mais sabidos, por conta de formação universitária igualmente pífia, dão aulas em faculdades de comunicação e participam de seminários pretensiosos em que se gargarejam, no plano da linguagem cinematográfica, as disfunções do minimalismo ou da “desconstrução”. E só.

De fato, salvo exceções, nenhum comentarista enfrenta a leitura substancial das grandes obras literárias, o estudo sistemático dos filósofos clássicos, poucos se aventuram a encarar os tratados da ciência econômica, raros são os que encaram o levantamento dos fatos representativos da humanidade analisados por historiadores de peso. No entanto é uma gente assim, basicamente ignorante, que semanalmente eleva ou derruba reputações, pontifica sobre conceitos gerais, admoesta o público com a classificação de filmes por amostra de estrelas, pontinhos ou recomendações críticas sobre as quais bonecos aparecem aplaudindo de pé ou dormindo a sono solto.

Os mais daninhos são os escribas “politicamente corretos” – hoje, condição fundamental para que o sujeito seja aceito pelas editorias dos chamados cadernos culturais da imprensa. Na prática, quem exercita o jargão do ofício crítico de cinema no Brasil só encontra pouso se defender, entre outras coisas, as imposturas ecológicas, as urdiduras das minorias de toda natureza, combater o imperialismo de Bush, atacar Hollywood ou prestar socorro ao “produto interno” (em geral, bruto) em face da aversão do público nativo pelo cinema do governo.

Um exemplo de como esse tipo de crítica trata um filme que fuja à cartilha engajada se encontra na análise de “A Vida dos Outros” (Das Leben der Anderen, Alemanha, 2006), obra do estreante Florian von Donnesmarck que levantou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2007. Aqui não estamos apenas diante de uma bela obra sobre a capacidade da redenção moral do ser humano, mas, seguramente, na presença do mais importante filme político feito nos últimos dez anos, um desses fenômenos raros de criação que ajuda a identificar o processo de degradação imposto pelos sistemas totalitários.

“A Vida dos Outros” nos dá conta de fase aguda da vida do dramaturgo Georg Dreyman (Sebastian Kock) e sua amante, a atriz Christa-Maria (Martina Gedeck), na República Democrática Alemã (RDA), então vivendo, sem que ninguém desconfiasse, os estertores da Era Honecker (Eric), o chefe de Estado que supervisionou a construção do muro de Berlin. (À época, convém alertar, Honecker estava subordinado ao secretário-geral do PC Soviético, Anatoly Chernenko, que o mantinha sob rédeas curtas).

Eis o plot: porque quer se apossar “na sua totalidade” da amante do dramaturgo oficial, objeto de sua lascívia, o ministro da Cultura H. Hempf (Thomas Thieme) resolve apelar para os serviços da Stasi, a célebre Central de Informações do Ministério de Segurança do Estado, considerada então como o aparelho de espionagem “mais eficiente” do mundo. O Coronel Grubitz (Ulrich Tukur) - figura na certa inspirada em Markus Wolf, o temível “homem sem rosto” da Stasi – aciona, por sua vez, o implacável agente Gerd Wiesler (Ulrich Mühe) para espionar, por meio de grampos telefônicos, câmeras e gravações, a vida íntima e social do casal de artistas.

Dado curioso, na medida em que espiona os dois personagens e testemunha os anseios de cada um, o agente se torna um ser de carne e osso e acorda para sentimentos tangíveis. Assim, toma consciência da fragilidade das vidas que estão em suas mãos e, num processo de reversão psicológica, espionando a “vida dos outros”, se dá conta da desprezível engrenagem a que serve. Neste processo de transformação, ele passa a omitir em seus relatórios encaminhados à Stasi os passos dissidentes do dramaturgo e sua troupe teatral, cuja razão de ser é a insubstituível liberdade cerceada pelo sistema comunista. Testemunha o espectador, então, o evoluir da consciência individual em luta contra a escuridão.

A crítica cabocla dá pouca ênfase à vigorosa denúncia ideológica que “A Vida dos outros” representa. Como ignora praticamente tudo, o crítico engajado minimiza a visão política do filme, a detonar todo um sistema doentio que está na raiz mesma do impasse que submete o mundo atual. Pois o mero exame do papel desempenhado pela Stasi, ao alcance de qualquer escriba que pretenda conhecer os fatos, levaria à descoberta dos crimes em massa cometidos pelo órgão de inteligência da RDA, cujo objetivo era manter intocado o mando totalitário.

Na verdade, se o crítico pelo menos lesse alguma coisa, não iria ignorar que a Stasi, até 1989, treinou ideologicamente os militantes do PT; apoiou os atos destruidores de Carlos, o Chacal; financiou as facções terroristas da Al-Fatah, Baader-Meinhof, Eta-Basca e o Exército Republicano Irlandês, o IRA - ao tempo em que aprisionou e eliminou cerca de 100 mil dissidentes durante 40 anos de existência.

No seu livro “O Homem sem rosto” (Editora Record, Rio, 1997), o ex-todo-poderoso coronel Markus Wolf, que durante 33 anos chefiou a Stasi, admitiu que o regime totalitário da RDA “fracassou porque não era mais apoiado pelas pessoas que viviam dentro dele”. Só faltou dizer que o seu centro de espionagem, destruindo a liberdade e “a vida dos outros”, tinha sido a peça principal da derrocada.

PS - Sem querer ser pioneiro de coisa alguma, informo aos amigos que, antes mesmo do mestre Olavo de Carvalho, escrevi, em artigo no Estado de São Paulo de 1990, em torno de Fidel Castro, sobre a ameaça que podia representar uma reunião de organizações de esquerda ocorrida em São Paulo em meados daquele ano. Devo anotar que, depois, tais encontros tornaram-se permanentes sob o nome de Foro de São Paulo.


Nota do Editor: Ipojuca Pontes é cineasta, jornalista, escritor e ex-Secretário Nacional da Cultura.

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