Lembro-me de muitos Natais no Cambuci, e em todos choveu um pouquinho. Choverá certamente outra vez, neste. Muitas coisas ocorrerão exatamente como sempre ocorreram, e é isso que nos garante solo fértil para novidades legítimas. A novidade pela novidade, privada de toda fonte tradicional, é uma idiotice perfeita e acabada, estéril, quase sempre perigosa. Aliás, não são as novidades que são assim: a vida é que é assim. Não impliquem comigo. Olhem em volta. Por isso, não espero deste Natal nada de muito diferente do que esperei dos outros e, para falar a verdade, do que esperarei dos vindouros. O Natal não é uma palhaçada, senhores. É coisa seriíssima, que exige dos partícipes as mais elevadas e variadas habilidades. Isso não quer dizer que não se deva divertir-se durante os festejos - são festejos, afinal. Não vou perder o tempo de vocês expondo o que há para se comemorar; há quem o faça melhor, muito melhor do que eu, e não acordei muito prosélito hoje. Minha intenção é outra, mais leve e menor. Só quero partilhar coisinhas curiosas. Não há de ser nada demais. É isso aí. Os meus Natais no Cambuci foram sempre cheios de gente, porque sempre arrumávamos uma maneira de nos misturar, de acolher quem viesse de fora. Muitas vezes, funcionou bem. Noutras, o sucesso não foi, como direi? Completo. Iam primos e primas e tios e tias à nossa casa, e alguns convidados de fora, e alguns desconhecidos. Sempre acabávamos conhecendo alguém que, depois, nunca mais veríamos. Meu avô materno, oriundo escaldado pelos primeiros anos difíceis no Brasil, enchia vários copos à sua frente: o de vinho, o de coca-cola, o de champanhe, o de vinho branco, o de água; todos. A velha dele esperava meu pai servir o champanhe que mais havia lhe desfalcado só para dizer: "Ah, é muito bom, mas prefiro mesmo é minha Cidra Cereser". Já naquele tempo (não tenho mais avós), meu irmão mais velho comia até poder dizer "Comi muito, estou passando mal, meu Deus, vou morrer, puta que o pariu, me passa umas frutinhas secas aí. Isso, vou misturar com esse queijo aqui... Assim... Tem sorvete?". Minha mãe sempre arrumou alguma coisa boa para se lamentar. Freqüentemente, era o fato de que havia se acabado na cozinha e agora já não sentia mais o gosto de nada. Hoje em dia, como as coisas se passam na minha casa e sou eu que cozinho, ela dá um jeito de reclamar das visitas. Ou do horário em que se serve a mesa. Ou da quantidade de álcool ingerida pelos outros. Ou dos fogos. Ou da ausência deste ou daquele ente querido que já se foi. Ela também reclama pelos entes queridos que ainda não vieram. Quer netos. O importante é manter a forma, compreendem? Certa vez, o vizinho problemático irrompeu em nossa sala, narinas agitadas, sem camisa, brilhando de suor, e tudo porque não podia guardar para si a seguinte observação (que julgava digna de ser entregue à reflexão de meu pai): "Oscarzão, Natalzão é foda!". Há o Donato, patrimônio histórico-cultural cambucetense. Ele e sua conhecida voz grave e metálica são presenças garantidas desde que meu pai morreu e o vizinho problema deixou de ser problema. Quando minha mãe resolveu fazer preceder a ceia por uma pequena missa e, para tanto, convocou um padre amigo da família, frei Lenzi, o Donato atrasou-se. Veio a calhar. A casa já à luz de velas e frei Lenzi, vinho e pão em mãos, nos questionava retoricamente acerca do verdadeiro sentido do Natal. Nesse momento, Donato enfia a cabeça pela janela e, pastoso, trovoa das mais profundas profundezas o mais estranho "Ho, Ho, Ho". Coisa fina mesmo. Vamos ver se a irmã gostosa da minha cunhada aparece. Todo mundo deve ter uma irmã gostosa de cunhada para aparecer no Natal. A minha desempenhou de maneira muito adequada a função, ano passado. Alguns de meus convidados garantiram-me que, uma vez em casa, tiveram que tomar três banhos. Dois só para esquecer a irmã da minha cunhada. É justo. Há o pôquer natalino. É verdade, parece estranho jogar pôquer no Natal, mesmo que bem depois da ceia. Não sei explicar como, mas as coisas ainda funcionam assim, conspurcadas. Creio que seja porque há sempre alguém bêbado o suficiente para impedir que a parada siga séria. E olhem que é a dinheiro. Da última vez foi a obscura escritora mineira Mariella Augusta, ex-Literário, mulher de coxas grossas e que mente. Avacalhou a coisa toda. Tumultuou a mesa. Sujou a toalha. Pelo que me lembro babou, inclusive. Impediu Lanyi de desenvolver seu melhor jogo. Envergonhou o marido, sujeito irreprochável. Perdeu e não pagou, no que andou bem. Fez o diabo. Este ano, não sei quem vai atuar nesse papel. Mariella deve estar conosco, mas amarraremos seu pé noutra mesa, bem longe da nossa. Conto com a sorte. A choradeira é imprescindível. Só os canalhas não choram no Natal. Lógico, não é preciso todo mundo chorar ao mesmo tempo. A rigor, pode-se até chorar escondido. Se você for pego, terá sido esplêndido, clássico mesmo. E há mais: afora os benefícios espirituais de se chorar no Natal, há os de ordem prática. Chorar abre o apetite. Depois de inúmeros acepipes, as lágrimas sempre são úteis a quem deseja gozar a plenitude das ceias monumentais. As ceias monumentais existem para serem gozadas sem entraves de consciência sejam de ordem moral, sejam de ordem estética. Às favas com as dietas. E cuide de tratar seus irmãos como irmãos ao longo do ano inteiro que, aposto, nenhuma fartura poderá lhe fazer mais do que lhe fartar. Eu sei, há quem aparece para encher o saco porque você está feliz. São os tais juízes dos Natais alheios. Os juizes dos Natais alheios não estão preocupados com o Natal; estão apenas preocupados em apontar o dedo. Tenho uma idéia de um lugar melhor para esses dedos todos. Na minha mesa é que não é. O Cristo ofereceu a outra face, o que é uma coisa. Não pediu a ninguém que fizesse papel de bobo, o que é outra, muito diferente. Ignore essa raça. Deixe para cuidar dela lá pelo carnaval. Espero que seja assim o Natal do Cambuci Profundo. Não deve ser muito diferente, afinal, e não consigo pensar num Natal em outro lugar. Que chova um tanto. É meu segundo ao lado da Jovem Esposa, auxiliar forjada nas duras batalhas dos churrascos sem fim, dos jantares pantagruélicos e do carteado brutal. Estou ansioso. Não sei bem porque, estou feliz por vocês também. Este foi um bom ano. Feliz Natal a todos. Quando o ano novo tiver surgido, eu estarei com ele. Na ponta dos cascos, como nunca antes. Vai ser melhor ainda. Até lá. Nota do Editor: André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.
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