Três dos quatro maiores jornais deram manchete com o furto de duas telas, uma de Picasso, outra de Portinari, facilmente levadas do Masp, o Museu de Arte de São Paulo. Era uma boa história, pelo nome dos artistas, pelo valor das obras - calculado em 55,5 milhões de dólares - e pelos detalhes grotescos, como o alarme desligado. Pode ter sido uma boa escolha, mas os critérios de seleção de manchetes andam um tanto misteriosos. Na mesma semana, um editor mais atento havia notado um fato inquietante: em menos de um mês, montadoras fizeram recalls de 97.560 automóveis. Qualquer título poderia honestamente arredondar o número ou mencionar "quase 100 mil". Mas o maior destaque foi uma chamadinha de uma coluna, publicada na quarta-feira (19/12) na primeira página do Estado de S.Paulo. Só a matéria do Estado, editada no caderno de Economia, chamou a atenção para o total acumulado no mês. O Globo deu, também no caderno econômico, uma reportagem sobre o último recall, o da Citröen, e mencionou alguns casos anteriores, mas sem chamar a atenção para o acúmulo de casos. Recalls têm sido comuns tanto no Brasil quanto noutros países e nem sempre são motivados por problemas menores. Na semana passada, por exemplo, a Renault havia chamado os proprietários de 10.534 carros Logan por causa de possíveis problemas na caixa de direção. Eram problemas de segurança e poderiam resultar em mortes. Que diabo estaria ocorrendo com os carros vendidos no Brasil? Informação rotineira Algumas notícias mencionaram essa pergunta, mas o assunto, apesar dos quase 100 mil casos em apenas três semanas, foi tratado como noticiário rotineiro, como se automóveis defeituosos fossem menos perigosos que brinquedos chineses com excesso de chumbo ou peças soltas. Naquela quarta-feira (19), a principal matéria de capa da maior parte dos grandes jornais foi o ágio no leilão dos serviços de telefonia de terceira geração. Talvez o recall de quase 100 mil veículos em dezembro não valesse manchete, mas não teria merecido um pouco mais de atenção e destaque? Talvez se justifique a mesma dúvida em relação ao trabalho escravo ou em condições parecidas com as da escravidão. Também no dia 19 o Valor noticiou na página de Agronegócios, no fim do caderno Empresas, a adição de cinco agroindústrias à lista suja elaborada pelo Ministério do Trabalho. Essas empresas, segundo o jornal, "atuam em carros-chefes do campo: álcool e açúcar, lácteos, carne bovina e setor madeireiro". A nova lista, divulgada no dia 18, tem 189 nomes de pessoas físicas e jurídicas. Há 14 nomes a mais do que na lista anterior, divulgada seis meses antes. Também esse tema tem sido tratado quase como informação rotineira - e nem sempre os editores se dispõem a dedicar-lhe mesmo um pequeno espaço. As poucas notícias têm um tratamento burocrático e são menos detalhadas que o material diário sobre o movimento das bolsas de valores. "Vigilância ostensiva" Desde 1995, de acordo com a mesma notícia, mais de 26 mil trabalhadores foram resgatados de situações análogas à escravidão. Se o leitor quiser saber, no entanto, quantos empresários foram presos, ficará no escuro. Não saberá sequer se algum criminoso, mandante ou mandado, foi parar na cadeia. Repórteres não têm curiosidade sobre isso? E seus chefes de reportagem, seus editores? Reduzir alguém a uma condição análoga à de escravo é crime definido no Código Penal, no artigo 149. O castigo previsto é reclusão de dois a oito anos e multa, além da pena correspondente à violência. As mesmas penas valem para quem "cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho" ou "mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos de uso pessoal do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho". Não é pouca coisa.
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