Dedicado a Ilo, o imortal 09 do meu Juventus de botão
Tudo seguindo fora da ordem, inclusive esta minha crônica que chega um dia atrasada. Não há de ser nada. O final de ano confunde tudo, confunde todas as coisas. Na confusão, algumas escapam de onde não deveriam ter escapado. Vejamos, por exemplo, as reflexões abaixo. É material de sanatório, podem apostar. Começou não sei quando. Certamente antes de me ensinarem a ler e escrever. Todo mundo passou por isso em algum grau e, mesmo hoje, ainda passa pontualmente. Eu levei adiante, aprofundei. Tem sido divertido, mas há quem pense que a mania começa a ficar estranha. A Jovem Esposa é dessa opinião. Acho que é exagero. O que tem demais tratar este ou aquele objeto por um nome e, de quebra, atribuir-lhe personalidade compatível às suas atividades? Hein? Qual o problema? Depois que me casei, é verdade, a prática tem tomado proporções. Quando se dorme sozinho não há com quem compartir certas tiradas, que então se perdem. Quando se ainda é solteiro, a sobreposição alucinante dos cenários na corrida célere por outra noite de afeto não permite que criemos vínculos. Falta-nos a intimidade com o que nos cerca. Assim, a brincadeira se restringe ao carro do pai, aos jogadores de botão, a um tênis no máximo. No quarto de casal, não. O quarto de casal é a verdadeira usina das sandices. Não se animem. Não estou falando do que não se fala. Estou só jogando conversa fora. Passemos aos fatos. Tudo será esclarecido. Alberto, o armário embutido. Tímido, misterioso, meio desonesto. Esconde o que pode, revela apenas o inevitável. E não fecha por nada neste mundo, o Albertão. Vou com a cara dele, apesar de tudo. Não cheira bem, mas é por conta da idade. Não é nada prático, não se deixa desvendar. Há certos pontos do interior de Alberto que ainda estão longe de qualquer contato humano, tamanha sua inacessibilidade. Sejamos compreensivos: Alberto deve ser assim porque já veio com a casa e é sempre deixado para trás por quem a abandona. Em todo caso, pelo menos não é dedo-duro como Alfredinho. Alfredinho saiu da casa da Jovem Esposa. É o “cheirinho” dela, aquelas almofadas nas quais as crianças se aninham e que muitas meninas carregam para a vida adulta, normalmente até o primeiro rebento. Alfredinho, na realidade, já não executa suas funções de “cheirinho” há anos. Inclusive porque anda mais para “fedidinho”. Alfredinho é um bom filha-da-puta, isso sim. Desconfio que seja são-paulino. Cheio de frescuras, parece acreditar que só ele é digno de atenção. Comigo, não tem mole. Se ninguém estiver vendo, peido na cara do canalha. Zezão. Zezão é boa praça, suporta bem peças e peças de roupas. É meio desequilibrado, tudo bem, mas desconfio que seja algo relacionado à bebida. Toda vez que bebo, assim que lhe penduro as calças o irresponsável se atira sobre a cama, nitidamente mal-intencionado. O problema com Zezão é que, nas discussões, é daqueles que fica querendo apaziguar. É da turma do “deixa disso”. Quando não estou perto, assente para os maiores absurdos que Alfredinho inventa. Quando Alfredinho está na sala, desce-lhe o cacete. Quando o submetemos à devida acareação, se faz de pirulão abobado. Só está perdoado porque é de cerejeira e cheira bem. Márcia, a cama macia. Foi presente de minha tia. É, de longe, o objeto mais sensato da casa toda. Firme, mas acolhedora, receptiva e flexível sem degenerar em frouxidão, Márcia jamais refuga em nenhuma de suas inúmeras tarefas. Compreensiva, é a amiga de todas as horas, sempre disposta ao conselho acertado e à conversação inteligente. É muito lida, a Márcia. E só fala na hora certa. É triste, mas não posso apresentar-lhes pessoalmente. Ela é muito reservada e detesta sair. A melhor amiga de Márcia é Ana Lúcia, a luminária. Esguia, quase sensual, a leitura sem o pescoço comprido de Ana Lúcia, sem sua aquecedora vigília, é sempre menos proveitosa. Mocinha fogosa, Ana Lúcia gosta de ajudar no pôquer quando a instável lâmpada da sala dá para trás. Se pudesse passeava pela casa toda, a piranhinha. Gosto dela, tenho-lhe mesmo algum tesão. Deve ser por isso que a pobre é a principal vítima das intrigas de Alfredinho. A Jovem Esposa vive querendo-a desligada, ameaça-a com a doação, essas coisas de ciúmes. Não admito. Ana Lúcia é minha protegida e Alfredinho que vá à puta que o pariu. Canalha entojado. Descendo as escadas, há a cozinha. As Casas Bahia tiraram-me o gosto de batizá-la e meteram-lhe logo um “Camila”. Sou obrigado a dizer que combinou. Camila convive bem (creio que maritalmente, mesmo) com Bernardão, o Fogão Amigão. Bernardão é presente de casamento da minha sogra. É o verdadeiro homem da casa. É o quinto cavaleiro do Apocalipse. Está aí para anunciar que os outros quatro não passam de mariconas loucas e que agora é que são elas. O cara é um animal, desperta em mim sentimentos quase filiais. Bernardão, Forno e Fogão, é a ignorância personificada (no bom sentido, senhores). É capaz de assar, sucessivamente e sem dar o menor pio, coisa de mais de trinta quilos de prazer ancestral. Bernardão não refuga: assa. Assa e pronto. Meu sonho é ver Alfredinho se entregar à impertinências num dia em que Bernardão tiver acordado com os cornos virados. Vai direto para a bocarra furiosa do Amigão. Eu vou é rir. Há muito mais. Regina, a geladeira. Não tenho queixas. É miúda, mas adequada para se começar a vida. Consistente, a despeito de carregar a pecha de não se limpar sozinha direito. Nunca falha, nunca decepciona. Bem melhor do que Maria, a lavadora de roupas. Creio que essa não dure muito. Já está gagá, cospe mais do que trabalha e ainda vaza em serviço. Fica lá porque não tem quem cuide dela na velhice, temos pena, essas coisas. Quando bater as botas, oferecerá o tanque para a nova churrasqueira portátil. Tenho uma assim, a Cremilda, construída dessa forma e que não enferruja jamais. Muitos dos leitores conhecem Cremilda e sabem do que ela é capaz quando orientada com carinho. O problema é quando ela perde a cabeça, temperamental que é, e sai por aí soltando fumaça pelas ventas. Cremilda é outra cuja lua não bate com a de Alfredinho e pode ser que, dia desses, eu deixe os dois acertarem as diferenças a sós, assim como que por engano. Aquele merdinha bem que merece. E há meu melhor amigo, o grande Hélio, o ventilador. Sou ligeiramente gordo, e como todo gordinho preciso do ventilador para tudo. Já não durmo mais sem a conversa fiada agradável de Hélio, que ainda me faz companhia nas tardes de verão e, muitas vezes, nas noites de jogatina. Hélio ventila, dispersa a fumaça de cigarro dos outros e do meu charuto, leva o mau-cheiro do banheiro (sim, até ao banheiro ele vai) para longe – é, afinal, polivalente e fiel. Grande Hélio. Fica aqui registrado aquele abraço para o Helião, grande sujeito. Acho que é só. Como vocês podem perceber, minha saúde mental está intacta e não há motivo para esse alarme todo. Espero que alguns leitores se disponham a falar em juízo em meu favor, caso seja necessário. Temo alguma manobra de bastidores de Alfredinho. Astolfo, o sofá, confidenciou-me que ouviu (isso, um sofá ouviu uma almofada tramando coisas e depois veio me contar) o pentelho gabando-se de ter feito aliança com Lorenzo Corona. Trata-se do chuveiro incompetente, famoso por ter quatro estações e duas caras. É um camarada sem resistência. O ataque se daria em plena manhã de inverno, de preferência numa segunda-feira subseqüente a qualquer deslize palestrino. Nessas condições, se o pior acontecer, creio que poderei alegar insanidade temporária, não é mesmo? Hein? Hein? Hein? Nota do Editor: André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.
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